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Detalhe de “A Fuga dos Prisioneiros”, de Jacques Joseph Tissot.
Detalhe de “A Fuga dos Prisioneiros”, de Jacques Joseph Tissot.| Foto: Wikimedia Commons/Domínio público

Os salmos imprecatórios se encontram no Livro de Salmos, e contêm invocações ou pedidos de julgamento divino sobre os inimigos ou adversários do salmista. Eles geralmente expressam emoções intensas de raiva, vingança e desejo de justiça contra aqueles que estão causando sofrimento ou oprimindo o salmista ou o povo eleito de Deus. Esses salmos são caracterizados por sua linguagem forte, que pode parecer contraditória em relação aos ensinamentos de amor e perdão encontrados em outros lugares da Escritura. No entanto, eles refletem a realidade da luta humana e a busca por justiça diante da injustiça percebida. Os salmos 35, 69, 109 e 137 são exemplos de orações imprecatórias inspiradas por Deus e proferidas pelos salmistas em seu sofrimento e dor.

“Às margens dos rios da Babilônia”

O Salmo 137, situado no contexto do exílio na Babilônia, no século 6.º a.C., emerge como um poderoso testemunho da angústia dos judeus deportados de sua terra natal após a destruição de Jerusalém e do Templo. Este salmo começa com uma evocação das margens dos rios da Babilônia, onde os judeus exilados se sentavam lamentando sua condição e recordando com saudade de Sião. No entanto, sua dor transcende a nostalgia, transformando-se em um clamor de vingança contra os opressores, expressando o desejo de testemunhar a mesma ruína que testemunharam em Jerusalém. Este fervoroso pedido de justiça reflete não apenas o sofrimento intenso experimentado pelos exilados, mas também levanta questões teológicas e éticas sobre o desejo humano por retaliação em face da injustiça.

“Às margens dos rios da Babilônia nos assentamos e choramos, recordando-nos de Sião. Nos salgueiros que lá havia, penduramos nossas harpas, pois aqueles que nos levaram cativos nos pediam canções; e os que nos oprimiam pediam que os alegrássemos: Cantai-nos um dos cânticos de Sião. Mas como entoaremos o cântico do Senhor em terra estrangeira? Ó Jerusalém, que a minha mão direita se atrofie, se eu me esquecer de ti. Que minha língua se prenda ao céu da boca, se não me lembrar de ti, se eu não preferir Jerusalém à minha maior alegria. Senhor, lembra-te dos edomitas, do dia de Jerusalém, pois eles diziam: Arrasai-a, arrasai-a até os alicerces. Filha da Babilônia, que serás destruída; feliz aquele que te retribuir o mal que fizeste a nós.” (Salmos 137,1-9)

O fervoroso pedido de justiça no Salmo 137 reflete não apenas o sofrimento intenso experimentado pelos exilados, mas também levanta questões teológicas e éticas sobre o desejo humano por retaliação em face da injustiça

A oração expressa no Salmo 137 foi feita em resposta à destruição de Jerusalém e do Templo pelos exércitos da Babilônia, em 586 a.C. Jerusalém, a cidade amada por Deus e o centro de adoração e culto de Israel, ocupava um lugar central na vida espiritual do povo judeu. Os Salmos de Romagem (120-134), cantados durante as peregrinações para Jerusalém, refletiam a importância espiritual e simbólica da cidade para o povo de Deus. A capital do reino de Israel era onde Deus mantinha sua presença e onde ocorriam as festas e sacrifícios anuais para afirmar a aliança entre Deus e o povo eleito. No entanto, a desobediência do povo resultou na violação das estipulações dessa aliança e na devastação de Jerusalém, levando à sua destruição e ao exílio do povo judeu. A dor e a angústia expressas no Salmo 137 refletem a profunda tristeza e a sensação de desolação experimentadas pelos exilados diante da perda de sua cidade sagrada e da ruptura de sua comunhão com Deus.

A conquista da cidade

Na Antiguidade, uma conquista militar era uma campanha complexa e prolongada. Quando um exército se aproximava de uma cidade fortificada, situada em terrenos elevados, como Jerusalém, a escassez de água era uma preocupação imediata. O primeiro passo dos invasores era muitas vezes fechar as fontes de água da cidade, lançando um ultimato aos habitantes para que se rendessem e evitassem uma possível destruição. Se a cidade resistisse, enfrentaria um cerco prolongado, que poderia durar anos – o cerco babilônico de Jerusalém começou em 589 a.C. Durante o cerco, todas as entradas da cidade eram bloqueadas, o que tornava difícil para os habitantes manterem suprimentos e comunicações com o exterior. Jerusalém, localizada entre colinas e vales, possuía saídas secretas por esses vales, por onde os judeus poderiam tentar escapar. No entanto, aliados dos invasores, como os edomitas, muitas vezes estabeleciam emboscadas nessas rotas de fuga, entregando os fugitivos às forças invasoras. Este cenário é documentado no livro do profeta Obadias, evidenciando as táticas e as consequências das conquistas militares na Antiguidade.

Os horrores dos cercos militares na Antiguidade são ilustrados pela brutalidade sofrida pelos capturados. Eram práticas comuns os empalamentos diante das muralhas, onde lanças eram inseridas nos ânus das vítimas e elas eram erguidas diante das muralhas. Uma representação do horror do cerco de Jerusalém pelo exército assírio do rei Senaqueribe, em 701 a.C., pode ser vislumbrado numa maquete que está no Ari’el Center for Jerusalem in the First Temple Period, um museu próximo da “Muralha Larga”, em Jerusalém, mostrando arqueiros defendendo a cidade, torres de cerco se aproximando ameaçadoramente com soldados assírios, e cativos judeus empalados ao fundo. Para intensificar a tragédia, os corpos dos mortos poderiam ser catapultados para dentro da cidade para propagar doenças como tifo e cólera. Com a escassez de água e alimentos, os sitiados recorreriam a sacrifícios de cavalos, cães, gatos e até ratos para se alimentar. Relatos de cercos da Antiguidade sugerem até mesmo o desesperador ato de canibalismo, com algumas pessoas chegando a se alimentar de bebês recém-falecidos. Essas narrativas destacam os extremos de desespero e crueldade enfrentados durante os cercos na Antiguidade.

Enquanto os exércitos prosseguiam metodicamente com a demolição das muralhas, planejavam invadir a cidade em pontos distintos, visando neutralizar qualquer defesa remanescente. A fragilidade das defesas era notória, com mulheres e crianças sendo as primeiras vítimas devido à alocação prioritária de recursos para as tropas e o palácio real. Esta situação retrata a crueldade da guerra na Antiguidade e a determinação implacável dos invasores em conquistar uma cidade, um cenário sombrio e desolador para os cercados.

Um banho de sangue

Quando as muralhas finalmente cediam, os moradores da cidade eram sujeitos pelos vitoriosos a um massacre horrível. Mulheres eram vítimas de estupros brutais, muitas vezes por vários soldados, antes de serem executadas ou vendidas como escravas. Príncipes sofriam uma sentença rápida, frequentemente sendo os primeiros a serem executados, em um espetáculo público realizado diante dos rendidos. Reis enfrentavam um destino especialmente cruel, com seus olhos sendo arrancados pelas próprias mãos do rei conquistador, antes de serem conduzidos ao cativeiro – tal qual Nabucodonosor fez com Zedequias, o rei de Judá. O caos e a brutalidade imperavam, deixando um rastro de horror e desespero.

A prática de deslocar povos de suas terras para outras regiões era comum nas guerras da Babilônia. No entanto, ao ler sobre o “vale de ossos secos”, em Ezequiel 37, é preciso conectar essa visão com a realidade histórica. Deus concede uma visão ao profeta e o instrui a trazer vida aos ossos secos. Esses ossos secos representam a desolação e a destruição do povo de Judá. Após a queda da cidade, com a liderança exterminada e o rei derrotado sendo levado cegado como um troféu, os sobreviventes enfrentaram uma série de humilhações e perdas. Escravizados, eles eram amarrados em filas e levados pelo deserto, onde qualquer pessoa incapaz de prosseguir era deixada para morrer junto com aqueles a quem estava amarrada. Assim, o caminho entre Jerusalém e Babilônia foi pavimentado com os ossos daqueles que foram levados cativos, simbolizando a desolação e o sofrimento do povo eleito de Deus.

Os salmos imprecatórios não são uma súplica por força para vingança, mas sim uma prece para que Deus retribua de acordo com as obras daqueles que causam a calamidade

Orações respondidas

Diante de uma calamidade tão avassaladora, é impossível recorrer a orações superficiais e banais, quando diante de um Deus que é completamente santo, justo e soberano. Como poderíamos orar ao testemunhar uma nação ímpia humilhando nossa cidade, destruindo vidas em sua busca desenfreada pelo poder, mulheres sendo brutalmente agredidas sem qualquer proteção, homens sendo ceifados e famílias sendo arrancadas de seus lares à força? Nesse contexto, nossas súplicas seriam permeadas pela aflição, pela revolta e pela urgente necessidade de justiça divina, reconhecendo a profunda dor e a injustiça inimaginável que acompanha essa experiência. Como o clérigo anglicano John R. W. Stott escreveu: “Não acho difícil imaginar situações em que os santos homens de Deus clamam, e devem mesmo clamar a Deus por vingança (...) e isso sem qualquer sentimento de animosidade pessoal”.

Portanto, é importante notar que não se trata de uma súplica por força para vingança, mas sim uma prece para que Deus retribua de acordo com as obras daqueles que causam a calamidade. Embora a linguagem de esmagar crianças contra as rochas seja intensa, o cerne da oração é que o salmista suplica pela justiça divina, pedindo que a Babilônia e seu aliado, Edom, sejam punidos por seus atos cruéis. E, de fato, a oração foi respondida pelo único Deus vivo e verdadeiro, o Santo de Israel. Cerca de 30 anos após a destruição de Jerusalém, Edom caiu sob o jugo da Babilônia. Uma tribo árabe, a dos nabateus, ocupou Petra, a capital de Edom, enviada para lá por Nabucodonosor. Em 312 a.C. Antígono, um dos generais de Alexandre, o Grande, esmagou estes povos e destruiu Petra. No século 2.º a.C. os edomitas, instalados no sul de Israel, foram derrotados por Judas Macabeus: “Então Judas levou a guerra aos filhos de Esaú, na Idumeia, na região de Acrebatena, porque eles estavam assediando Israel. Infligiu-lhes fragorosa derrota, humilhando-os e tomando seus despojos. (...) Entrementes saiu Judas com seus irmãos para guerrear contra os filhos de Esaú, na região meridional. Apoderou-se de Hebrom e das aldeias adjacentes, destruiu suas fortificações e incendiou as torres que as rodeavam” (1Mc 5.3,65). E o remanescente foi massacrado pelos exércitos romanos, na queda de Jerusalém, em 70 d.C.

O profeta Daniel relata a última noite do último rei da Babilônia, Belsazar, pouco antes da invasão persa. O rei babilônico realiza um banquete, durante o qual ele pretende que seus convidados bebam dos tesouros do templo de Jerusalém enquanto louvam os deuses babilônicos. Em seguida, ele vê uma mão escrevendo na parede do palácio. Daniel é chamado para interpretar a escrita após os sábios de Belsazar não conseguirem fazê-lo. E o profeta registra o fim melancólico da Babilônia, em 539 a.C.:

“Então aquela parte da mão que traçou o escrito foi enviada por ele. Esta é a frase que foi escrita: Mene, Mene, Tequel e Parsim. E esta é a interpretação: Mene: Deus contou os dias do teu reino e pôs fim nele. Tequel: Foste pesado na balança e foste achado em falta. Peres: O teu reino está dividido e entregue aos medos e persas. Então Belsazar deu ordem, e vestiram Daniel de púrpura, puseram-lhe um colar de ouro ao pescoço e anunciaram que ele seria o terceiro em autoridade no reino. Naquela mesma noite foi morto Belsazar, o rei dos babilônios. E Dario, o medo, recebeu o reino, tendo cerca de 62 anos de idade.” (Daniel 5,24-31)

Enquanto todos os convidados se regozijavam na festa, os soldados persas sob comando de Dario (identificado por alguns como Ciaxares II) invadiram a Babilônia após seus engenheiros terem conseguido desviar as águas do Rio Eufrates, resultando na morte de Belsazar – fato também mencionado na Ciropédia, de Xenofonte. Para o suplicante judeu, isso representou a realização da oração fervorosa que ele fizera, lembrando-se do destino de Jerusalém, o lugar onde Deus havia depositado sua presença gloriosa, e dos moradores daquela cidade santa que foram assassinados pela cruel máquina de guerra babilônica.

Essas orações podem inicialmente chocar pela sua sinceridade e realismo, mas oferecem uma janela para a complexidade da experiência humana diante do mal e da injustiça ao nosso redor

Orando por justiça hoje

O que se destaca é que o salmista que fez a oração do Salmo 137 não estava buscando seus interesses pessoais. Como o reformador francês João Calvino escreveu: “Não é em seu próprio favor que apela dessa forma, senão que um santo zelo pela glória divina o impelia a convocar os ímpios a comparecerem perante o tribunal divino”. Não se trata da própria reputação, carreira ou até mesmo da família de quem faz essa oração que está em jogo, mas sim o próprio nome e honra de Deus, em relação ao povo como um todo. Jerusalém é vista como a cidade na qual Deus revelou sua graça, onde ele era adorado. No entanto, essa cidade foi completamente devastada. Agora, o salmista clama para que Deus não esqueça o que aconteceu na cidade santa, com seu Templo e povo.

Os salmos servem como “um espelho no qual se refletem [todas] as emoções”, como escreveu Atanásio de Alexandria em sua Carta a Marcelino sobre a Interpretação dos Salmos, refletindo dessa forma uma ampla gama de emoções e situações que todos os fiéis passam, incluindo aquelas experiências marcadas por injustiças e sofrimento. Portanto, cristãos podem por orar esses salmos imprecatórios: 1. aceitando-os como parte da Palavra de Deus, ou seja, estes salmos são parte integral da Bíblia e são considerados divinamente inspirados, expressando emoções humanas reais, incluindo raiva, indignação e desejo de justiça; 2. compreendendo-os como expressão de emoções legítimas, oferecendo uma maneira de colocar diante de Deus emoções intensas em relação à injustiça e ao sofrimento, assim como dando voz às preocupações e lutas humanas; 3. como expressão de confiança na justiça de Deus e na sua capacidade de julgar o mal, uma petição para que o Senhor intervenha e restaure a justiça – é importante destacar que Jesus Cristo ensinou sobre o inferno em várias passagens dos evangelhos, tratando do destino dos ímpios, a realidade da punição eterna e suas consequências, em algumas das suas parábolas, como a do rico e Lázaro (Lc 16,19-31) e a do juízo final (Mt 25,31-46), onde Jesus fala sobre a separação eterna entre os justos e os ímpios, destacando a importância da responsabilidade moral e da necessidade de arrependimento e fé em Deus para evitar o juízo final; 4. como identificação com o sofrimento, especialmente com aqueles que enfrentam opressão, perseguição ou injustiça, e que podem se identificar com os sentimentos expressos nos salmos imprecatórios.

O estudo dos Salmos inspirados por Deus em seu contexto histórico e cultural revela que todas as imprecações presentes neles são, de fato, orações; não há indicação de que os salmistas estivessem planejando retaliações, mesmo que experimentassem pensamentos vingativos. Essas orações podem inicialmente chocar pela sua sinceridade e realismo, mas oferecem uma janela para a complexidade da experiência humana diante do mal e da injustiça ao nosso redor. Se adotarmos uma postura menos complacente e mais comprometida com a santidade, poderíamos nos surpreender ao nos identificar com os sentimentos expressos pelos salmistas, em vez de simplesmente condená-los. Pois somos chamados a buscar uma compreensão mais profunda dos Salmos, e usar tal reflexão como uma oportunidade para crescimento espiritual e anseio por justiça e retidão nesse mundo de dor e sofrimento.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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