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Miniatura da “Histoire d’Outremer”, de Guillaume de Tyr, retrata batalha da Segunda Cruzada.
Miniatura da “Histoire d’Outremer”, de Guillaume de Tyr, retrata batalha da Segunda Cruzada.| Foto: Wikimedia Commons/Domínio público

Rodney Stark, falecido em julho de 2022, foi um sociólogo da religião, durante muito tempo professor de Sociologia e de Religião Comparada na Universidade de Washington, nos Estados Unidos, e, quando de seu falecimento, era professor de Ciências Sociais da Universidade Baylor, codiretor do Instituto de Estudos de Religião da mesma universidade e editor-fundador do The Interdisciplinary Journal of Research on Religion. Stark escreveu mais de 30 livros, incluindo O crescimento do cristianismo, Falso testemunho: desmascarando séculos de história anticatólica, A vitória da razão: como o cristianismo levou à liberdade, ao capitalismo e ao sucesso do Ocidente, e mais de 140 artigos acadêmicos. Uma de suas mais importantes obras é Os batalhões sagrados: a verdadeira história das Cruzadas. Este livro é extremamente importante por ser uma busca pela verdade sobre um tópico controverso na história ocidental: as Cruzadas. Portanto, adaptei as ideias publicadas por Lee Duigon, em sua resenha de God’s Battalions: The case for the Crusades, publicada na Chalcedon Foundation, para apresentar essa obra tão relevante.

Como afirma Duigon, nas últimas décadas os líderes do ocidente disputaram ferozmente para ver quem poderia oferecer o pedido de desculpas mais abjeto pelas Cruzadas – seja o The New York Times, peregrinos protestantes alemães e até o ex-presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, poucas semanas depois do ataque terrorista de 11 de setembro de 2001. Mesmo o papa João Paulo II pediu perdão aos cristãos ortodoxos gregos pela Quarta Cruzada. É afirmado, praticamente sem discordância, que as Cruzadas foram uma ação militar totalmente perversa, uma agressão sem sentido contra muçulmanos inocentes e inofensivos, e que todo o mundo muçulmano está ferido por estas ações desde então. Não apenas isso: esse sofrimento justificaria e desculparia qualquer violência muçulmana contra o ocidente na atualidade. Sugere-se, ainda, que as Cruzadas sejam a razão pela qual o Islã ficou muito atrás do ocidente em termos culturais, tecnológicos, políticos e econômicos. Parafraseando Duigon, tudo isso, segundo Rodney Stark, é bobagem.

O argumento de Stark é tão claro e convincente que ele pode ser resumido em um único parágrafo: “As Cruzadas não se levantaram sem provocação. Não foram a primeira fase do colonialismo europeu. Não foram organizadas em busca de terras, despojos ou conversos. Os cruzados não eram bárbaros que vitimizaram os cultos muçulmanos. Eles sinceramente acreditavam que serviam nos batalhões de Deus” (p. 280).

As Cruzadas só começaram após mais de 300 anos de agressão militar muçulmana ininterrupta contra o mundo cristão, sobretudo no Oriente Médio, norte da África e Espanha

Como afirma Duigon, “a verdade importa, por si só. A história também importa. Hoje, ninguém no ocidente parece atemorizado ou incomodado pelas ondas de invasores muçulmanos que, no passado, atacaram e conquistaram terras cristãs, sujeitando seus habitantes cristãos a séculos de perseguições variadas, perseguições que perduram até hoje. A primeira onda de invasão muçulmana consumiu o Oriente Médio, o Egito, o norte da África e a Espanha. A segunda engoliu a Anatólia e Constantinopla, e a terceira se lançou contra os muros de Viena, no coração da Europa cristã. Não foi por falta de vontade que os muçulmanos não conquistaram toda a Europa e todo o entorno do Mar Mediterrâneo”. Essa é a história e os antecedentes contra os quais as Cruzadas devem ser estudadas. Os muçulmanos eram os verdadeiros agressores e colonizadores. Stark conta toda essa história no primeiro capítulo de sua obra, “os invasores muçulmanos”.

No caso das Cruzadas, os ocidentais aprenderam nas escolas e por meio de filmes de Hollywood e documentários populares noções que não são fiéis à história real. Sobretudo os cristãos devem se opor a estas falsificações da história, não importando como as pessoas se sentem sobre tal postura.

Alguns dos fatos

Duigon lembra que as Cruzadas só começaram após mais de 300 anos de agressão militar muçulmana ininterrupta contra o mundo cristão, sobretudo no Oriente Médio, norte da África e Espanha. Finalmente, em 1095, o imperador bizantino Aleixo Comneno escreveu ao papa Urbano II, pedindo socorro militar ao ocidente cristão.

Alguns anos antes, o califa do Egito destruíra a Igreja do Santo Sepulcro em Jerusalém, junto com muitas outras igrejas cristãs e locais sagrados, em toda a Terra Santa. Os muçulmanos também assassinaram e escravizaram peregrinos cristãos que viajavam para a Terra Santa. Avaliando as evidências históricas conhecidas e documentadas, Stark conclui que assassinatos em massa de monges e peregrinos cristãos no caminho para a Terra Santa se tornaram comuns, fatos que desafiam as alegações sobre a suposta tolerância religiosa muçulmana. O papa e os pregadores das Cruzadas aludiram a esses numerosos incidentes, exortando os cavaleiros cristãos a defender seus irmãos cristãos.

Duigon questiona: os cruzados foram para o oriente para ficarem ricos? E responde: dificilmente – uma cruzada era um empreendimento muito caro. As Cruzadas não foram organizadas e lideradas por filhos excedentes das famílias nobres da Europa cristã, mas, como demonstra Stark, pelos cabeças das grandes famílias da nobreza europeia, que estavam plenamente cientes de que os custos da cruzada excederiam em muito as modestas recompensas materiais que se poderia esperar de tal campanha militar. A maioria se lançou a este esforço a um custo pessoal e financeiro imenso.

Tendo conquistado a Terra Santa, os cruzados estabeleceram pequenos reinos na região. Estes não poderiam sobreviver sem receber enormes subsídios da Europa – e por isso não podem ser compreendidos como colônias em nenhum sentido real. De qualquer forma, como argumenta Stark, identificar os reinos cruzados como colônias no sentido usual é absurdo. Em termos de controle político, os reinos cristãos eram totalmente independentes de qualquer Estado europeu. Em termos de exploração econômica, seria mais apto identificar a Europa como uma colônia da Terra Santa, uma vez que um fluxo muito substancial de riqueza e recursos ia da Europa para o Outremer – o termo francês para “alem-mar”, como eram conhecidos estes reinos cristãos: o Condado de Edessa, fundado em 1098 e perdido em 1144; o Principado de Antioquia, fundado em 1098 e perdido em 1268; o Reino Latino de Jerusalém (que tinha vários senhorios vassalos, sendo os principais o Principado da Galileia, o Condado de Jafa e Ascalão, o Senhorio da Transjordânia, e o Senhorio de Sidom), fundado em 1099 e perdido em 1291, quando a cidade de Acre caiu; e o Condado de Trípoli, fundado em 1104 e perdido em 1288. O Reino Arménio da Cilícia originou-se antes das cruzadas, mas o papa Inocêncio III concedeu-lhe o estatuto de reino. E o Reino de Chipre foi fundado durante a Terceira Cruzada, por Ricardo Coração de Leão, e foi perdido em 1489, quando sua última rainha o vendeu a Veneza.

O mito da civilização avançada muçulmana

Um novo questionamento de Duigon: os europeus foram os bárbaros e os muçulmanos eram avançados, como o revisionismo histórico atual afirma? Em um capítulo intitulado “‘Ignorância ocidental’ versus ‘cultura’ oriental”, Stark vira a compreensão convencional sobre esse assunto de cabeça para baixo. Como ele demonstra, as elites árabes adquiriram uma cultura sofisticada ao aprenderem com outros povos conquistados. Cristãos, judeus, zoroastristas e hindus, já civilizados e cultos quando os muçulmanos os conquistaram, continuaram sendo civilizados e cultos mesmo depois, com seus novos senhores muçulmanos sendo os beneficiários de seus esforços – seja no campo da filosofia, da arquitetura, do comércio ou da construção de navios. Grande parte das conquistas da “civilização muçulmana” foi obra de não muçulmanos forçados a adotar nomes árabes e publicar seu trabalho em árabe – e Stark oferece exemplos bem documentados dessa apropriação cultural feita por meio da violência e coerção muçulmana. Enquanto houvesse um grande conjunto de não muçulmanos para exercer alguma influência, a civilização árabe floresceu. Quando, após séculos de perseguição e conversão forçada ao Islã, a assimilação foi completada, o mundo intelectual muçulmano entrou em declínio e feneceu.

Os europeus foram os bárbaros e os muçulmanos eram avançados, como o revisionismo histórico atual afirma? Na verdade, as elites árabes adquiriram uma cultura sofisticada ao aprenderem com outros povos conquistados

Enquanto isso, a Europa cristã estava à frente do Islã em áreas como transporte, agricultura, poderio bélico e doutrina militar. “Mesmo que reconheçamos a veracidade das afirmações”, diz Stark, “de que os árabes instruídos possuíam um conhecimento superior dos autores clássicos e produziram alguns matemáticos e astrônomos excepcionais, a verdade é que eles permaneciam atrasados em relação a tecnologias vitais, como a das selas, esporas, ferraduras, carroças e carros, cavalos de carga e arreios, arados, bestas, fogo grego, construtores náuticos, marinheiros, agricultura produtiva, armaduras eficazes e uma infantaria bem treinada. Não causa espanto que os cruzados conseguissem marchar mais de 4 mil quilômetros, derrotar um inimigo tão numericamente superior a si e resistir enquanto a Europa pôde sustentá-los” (p. 91). Como assevera Duigon, estes argumentos de Stark são apoiados por fatos históricos conhecidos e facilmente acessíveis.

Três acontecimentos tenebrosos

Duigon destaca que, na cultura popular, os três momentos mais baixos das Cruzadas “seriam a violência contra os judeus europeus, o massacre de inocentes muçulmanos e judeus após a captura de Jerusalém, em 1099, e o saque de Constantinopla, a maior cidade cristã do oriente, em 1204. Stark avalia e investiga a verdade sobre cada um desses episódios”.

A Primeira Cruzada (1095-1099) consistia de três “cruzadas” destinadas a se encontrar em Constantinopla e, a partir dai, invadir o território muçulmano como uma força unida. Duas delas conseguiram seu intento original: a “Cruzada dos Príncipes”, liderada por nobres franceses e normandos, tais como Raimundo IV de Tolosa, Godofredo de Bulhões e seu irmão Balduíno de Bolonha, e Boemundo de Tarento e seu sobrinho Tancredo; e a “Cruzada do Povo”, liderada por Pedro, o Eremita. O terceiro grupo, a “Cruzada Alemã”, nunca chegou ao seu destino. Foi esse grupo, não os outros, que atacou os judeus, principalmente na região do Vale do Reno.

Como Stark demonstra em sua obra, isso foi feito apesar dos esforços extenuantes dos bispos cristãos alemães para proteger os judeus. Com a memória dessas atrocidades ainda evidente quando a Segunda Cruzada começou, em 1145, Bernardo de Claraval interveio com sucesso para impedir um segundo pogrom contra os judeus na região do Reno. Então, sim, de acordo com Duigon, alguns dos cruzados – mas não a maioria deles – foram culpados de assassinar judeus. Mas, longe de concordar com isso, a Igreja medieval fez tudo ao seu alcance para impedir homicídios contra os judeus na Europa cristã.

E o banho de sangue durante a conquista de Jerusalém em 1099, quando muçulmanos e judeus foram mortos na Santa Cidade? Stark explica que, pelas convenções da guerra medieval, as cidades que resistiam aos exércitos invasores acabavam sendo punidas severamente, quando tomadas pelo inimigo: “aos vencedores, os espólios” – uma tradição que remonta aos assírios e romanos nos tempos antigos. Como Stark destaca, essa era uma época cruel e sangrenta, mas não a compreenderemos se a interpretarmos por meio de ideias ou compreensões históricas atuais, impondo anacronicamente a Convenção de Genebra a esses tempos.

Talvez devêssemos comparar a conquista de Jerusalém com a recaptura de Antioquia pelos muçulmanos, em 1268, “o maior massacre de toda a era das Cruzadas”, “um massacre que chocou até os cronistas muçulmanos”, “uma orgia de tortura, matança e profanação” (p. 264), mas que é praticamente ignorada em muitos estudos recentes sobre as Cruzadas – esta omissão está presente, por exemplo, nas obras de Steven Runciman, Christopher Tyerman e até na de Jonathan Riley-Smith. Aliás, Saladino, ao fim da batalha de Hattin, em 1187, autorizou que “todos os [cavaleiros] templários e hospitalários [que] foram capturados [fossem…] decapitados” (p. 225) diante dele. Seja como for, massacres em cidades capturadas e mesmo no campo de batalha dificilmente são incomuns na história deste mundo caído em pecado e iniquidade, nem foram uma invenção dos cruzados.

O que é realmente preocupante é que um livro como esse precisou ser escrito. Os fatos sobre as Cruzadas estavam por aí, por assim dizer, esperando para serem unidos e exibidos. Nenhum trabalho extraordinário de detetive foi necessário

Quanto ao saque de Constantinopla, isso somente ocorreu após cerca de 200 anos de traição e jogo duplo bizantino – incluindo uma aliança imperial secreta com Saladino contra a Terceira Cruzada, em 1189. Em 1204, a gota d’água foi o lançamento de um ataque surpresa pelo imperador bizantino Aleixo IV contra a frota da Quarta Cruzada, que estava em Constantinopla – a convite do imperador! – para se reabastecer antes de atacar o Egito muçulmano. Com sua frota destruída e correndo o risco de passar fome na praia, os cruzados se voltaram contra outro autor de seus infortúnios, o novo imperador Aleixo V Ducas, e atacaram e saquearam a cidade. Como Duigon afirma, “homens melhores fizeram pior, com menos provocação”.

Redescobrindo a história

Como afirma Duigon, “o que é realmente preocupante é que um livro como esse precisou ser escrito. Os fatos sobre as Cruzadas estavam por aí, por assim dizer, esperando para serem unidos e exibidos. Nenhum trabalho extraordinário de detetive foi necessário”. Tudo o que Rodney Stark teve de fazer “foi sintetizar o trabalho desses especialistas [ou seja, historiadores] numa perspectiva mais abrangente e em prosa acessível ao leitor médio” (p. 18). “Stark alcançou seu intento admiravelmente”, avalia Duigon.

É irrelevante, lembra Duigon, que em 1453 – muito depois que o último cruzado foi expulso da Terra Santa – os exércitos muçulmanos conquistaram e saquearam Constantinopla, a capital da cristandade oriental, e a renomeou como Istambul, converteu suas famosas igrejas em mesquitas e a mantém até hoje? Temos ressentimentos sobre as Cruzadas que repeliram exércitos turcos no século 16 que se espalhavam pelos Balcãs e Europa Central, espalhando terror e crueldade até que finalmente foram derrotados em Viena e Lepanto? Foram aqueles cruzados há muito mortos que gradualmente, nos próximos 400 anos, transformaram o orgulhoso império turco-otomano no “homem doente da Europa”?

Os ocidentais aceitaram passivamente o mito da malignidade das Cruzadas; acreditaram que elas não foram provocadas, e que destruíram uma pacífica e tolerante civilização muçulmana

Os muçulmanos não redescobriram o ressentimento das Cruzadas até que os turco-otomanos perderam seu poder e territórios árabes, derrotados junto com seus aliados alemães, pelo exército britânico, no fim da Primeira Guerra Mundial, quando o mundo muçulmano foi forçado a enfrentar um mundo ocidental que experimentou uma Reforma religiosa e uma Revolução Industrial e saltou para a era moderna, enquanto a cultura islâmica definhou e se radicalizou. Mas é preciso haver uma razão para isso. Precisa ser culpa de alguém – não poderia ser culpa do atraso e fraquezas inerentes ao Islã. E, assim, as Cruzadas se tornaram – juntamente com a fundação do Estado de Israel, em 1948 – uma explicação redundante para tudo o que deu de errado com o Islã nos últimos quatro séculos. Para muitos, de alguma forma, se não fosse pelas Cruzadas e pelos judeus, lugares como Afeganistão, Sudão e Iêmen estariam muito à frente do ocidente hoje.

Como Duigon conclui, os ocidentais aceitaram passivamente o mito da malignidade das Cruzadas; acreditaram que elas não foram provocadas, que destruíram uma pacífica e tolerante civilização muçulmana e que, por isso, agora, levam muçulmanos a convocarem jihads e ataques terroristas contra o ocidente e Israel, e estimulam impunemente o antissemitismo contra os judeus em todo o ocidente. Talvez Rodney Stark esteja certo ao atribuir o surgimento do mito dos brilhantes islamitas atacados pelos bárbaros cruzados aos historiadores iluministas europeus, que desejavam desacreditar a Igreja cristã para promover um humanismo e relativismo agnóstico a partir do século 18. Seja qual for o caso, não podemos fazer julgamentos racionais ou justos sobre o presente, se ainda estivermos presos a caricaturas grosseiras do passado.

Só podemos ser gratos por Rodney Stark ter escrito uma obra tão importante como esta, ainda que lamentemos o fato de a edição brasileira da Quadrante ter omitido as imagens e, sobretudo, os mapas que acompanham a obra original em inglês. Mas, ainda assim, Os batalhões sagrados: a verdadeira história das Cruzadas é leitura obrigatória para clérigos e leigos cristãos e para todos aqueles interessados em, aprendendo do passado, discernir o que está ocorrendo no tempo presente.

Correção

Por erro do colunista, uma versão inicial não mencionava a resenha de Lee Duigon, na qual o colunista se baseou em seu texto. O devido crédito foi acrescentado ao fim do primeiro parágrafo.

Corrigido em 06/11/2023 às 12:48
Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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