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Foto: André Rodrigues/Gazeta do Povo
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Um estudo publicado pelo Ipea no último mês trouxe novos dados para desconstruir o mito ruralista que cerca a reforma da Previdência. Esse mito é o que sustenta a necessidade de uma idade de aposentadoria mais baixa para quem trabalha no campo, sem a adequada contribuição para o INSS. Por essa versão da história, o tratamento especial é necessário porque as condições de vida do trabalhador rural são mais desgastantes do que na vida urbana.

O tema da aposentadoria rural virou tabu durante a tramitação da malfadada reforma da Previdência proposta pela equipe econômica de Michel Temer. Na origem, ela propunha uma idade mínima igual à que valeria para o meio urbano, de 65 anos para os dois sexos. Atualmente, trabalhadores rurais podem se aposentar por idade a partir dos 55 anos, para mulheres, e 60 anos para homens, cinco a menos do que na regra para quem trabalha no meio urbano. A proposta também criaria uma contribuição individual para substituir a contribuição sobre a parcela da produção e passava a cobrar de exportadores do agronegócio.

A ideia da reforma original de Temer de igualar os sistemas rural e urbano causou uma oposição grande de ruralistas, de representantes de grandes e pequenos produtores. Eles preferem que a aposentadoria rural seja tratada majoritariamente como um benefício assistencial (ou seja, sem necessidade de contribuição) e não como um regime previdenciário. No Congresso, a ideia de equiparação dos sistemas foi derrubada, juntamente com mudanças nas regras para a concessão do benefício de prestação continuada (BPC).

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A confusão gerada pela teoria da separação do que é assistência e previdência é proposital, porque leva a maioria das pessoas a entender que a aposentadoria rural não pode ser igual à do meio urbano por ser uma espécie de ajuda a quem é mais dependente do apoio do Estado. O problema dessa visão é que no fim acaba não separando quem precisa de assistência de quem tem capacidade de trabalhar e contribuir integralmente ao sistema previdenciário.

A falta de um modelo que leve em conta as capacidades reais do trabalhador rural fez com que se criasse uma bomba financeira. No ano passado, o déficit da previdência rural foi de R$ 110,7 bilhões. A arrecadação total nesse segmento foi de apenas R$ 9,3 bilhões, com benefícios pagos de R$ 120 bilhões. O déficit urbano foi de R$ 71,7 bilhões, diante de benefícios pagos no valor de R$ 437 bilhões.

Justificar essa diferença entre os dois sistemas ficou mais difícil com a publicação de um estudo do Ipea que avalia dados objetivos das populações urbana e rural. Seria de se esperar, pela tese ruralista, que quem mora no campo tivesse uma sobrevida menor após a aposentadoria por causa das condições piores de vida. Os autores Luis Henrique Paiva, Matheu Stivali e Leonardo Alves Rangel concluíram, no entanto, que não há diferença na idade de cessação de benefícios (na verdade, a diferença mais considerável é em favor de homens do campo, que vivem dois anos a mais do que os urbanos).

O estudo também avalia dados sobre saúde, comparando cidadãos rurais e urbanos. Segundo os autores, há de fato uma pior qualidade de saúde entre moradores do meio rural, o que não necessariamente justifica um esquema previdenciário diferente do que existe no meio urbano. Isso porque a prevalência dos problemas de saúde relatados no estudo é sempre maior nas cidades, onde não há a possibilidade de aposentadoria precoce. Aqui, o argumento é o de que não há justiça na manutenção de uma idade mínima menor para quem vive no campo sendo que os problemas de saúde que porventura possam afetar sua capacidade de trabalho acometem mais pessoas vivendo na cidade.

Concluem os autores: “A evidência disponível sugere, assim, que a regra que estabelece idades diferentes para clientelas urbanas e rurais não contribui para que a Previdência Social atinja o objetivo de oferecer cobertura contra a perda de capacidade laboral. Como não parece haver perda precoce de capacidade laboral por parte dos trabalhadores rurais, faz pouco sentido falar em suavização do consumo. A previdência rural contribui, de fato, para a redução da pobreza e alcança um público vulnerável – mas deixa trabalhadores urbanos que vivem em condições semelhantes, e em maior número, sem cobertura, de forma que possui efetividade limitada”.

O assunto da aposentadoria rural pode voltar à pauta no próximo ano, quando a equipe do ministro da Economia Paulo Guedes vai apresentar seu plano para a reforma da Previdência. Membros do novo governo já falaram na separação entre assistência e previdência, o que não significa deixar a aposentadoria rural intacta. Para o resultado final das contas públicas, seria saudável aumentar a arrecadação de quem trabalha no campo, o que significa separar quem de fato não tem capacidade contributiva e acabar com benefícios tributários a exportadores.

Ao separar quem realmente não tem como contribuir, com um cadastro preciso feito pelo INSS, o sistema seria mais justo e menos sujeito a outro grande buraco: as ações judiciais. Em 2017, 82 mil benefícios previdenciários rurais foram concedidos por decisão da Justiça. No meio urbano, foram apenas 12 mil. Isso ocorre porque a aposentadoria rural não requer contribuição, apenas a comprovação de 15 anos de trabalho no campo, o que pode ser feito com a apresentação de uma testemunha diante de um juiz. No bolo das decisões, entram pessoas com direito legítimo negado pelo INSS e também quem conseguiu fraudar o sistema – problema que atingem outros benefícios assistenciais e é de uma força-tarefa federal.

Para tornar mais justificável uma reforma que mexa com a aposentadoria rural, o novo governo poderia acelerar políticas para melhorar o acesso à saúde e educação, além do combate ao trabalho infantil. Não é correto ignorar esses outros problemas por serem contrabalançados por uma vantagem no acesso à aposentadoria.

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