• Carregando...
Fronteira entre Afeganistão e Paquistão, em 20 de agosto de 2021.
Fronteira entre Afeganistão e Paquistão, em 20 de agosto de 2021.| Foto: EFE/EPA/Akhter Gulfam

O mundo acompanha com horror e grande preocupação a retomada do Afeganistão pelo Talibã, certo de que um tsunami de violações de direitos humanos se aproxima rapidamente. Mas, acompanhando as notícias em alguns dos mais famosos veículos de imprensa do Brasil, notei certa unilateralidade. Ouvi notas insistentes sobre violações dos direitos das mulheres, que certamente verão graves retrocessos, e algo sobre liberdade de expressão, mas praticamente nada sobre um tema absolutamente crucial: a ameaça à liberdade religiosa.

Sei que meu incômodo terá ressonância entre muitos leitores: a má vontade em reconhecer a intensa e terrível perseguição a cristãos e outras minorias religiosas, promovida em vários países por radicais islâmicos e sob regimes totalitários como o finado Estado Islâmico, ainda é uma memória viva. A minimização desse problema por parte de setores do movimento internacional de direitos humanos e da imprensa doeu muito e ainda dói. Mas parece que ainda doerá por bastante tempo.

A má vontade em reconhecer a intensa e terrível perseguição a cristãos e outras minorias religiosas, promovida em vários países por radicais islâmicos, ainda é uma memória viva

Para introduzir a questão a nossos leitores, convidei o amigo Igor Sabino, estudioso de Relações Internacionais, líder do Philos Project no Brasil, e contribuinte ocasional nas colunas de outros colegas da Gazeta. Boa leitura!

****

Na última semana, o mundo testemunhou com horror as imagens do Afeganistão após a retirada das tropas dos EUA. As cenas de civis se agarrando a aviões em movimento e depois despencando das alturas após uma aeronave decolar são algo que vai entrar para a história. O retorno dos talibãs ao poder apavora ativistas de direitos humanos e a opinião pública mundial. O grupo terrorista islâmico, criado em 1995, após a expulsão dos soviéticos em 1989, controlou o Afeganistão até 2001. Nesse ano, no contexto da chamada Guerra ao Terror, após os atentados do 11 de setembro, os EUA invadiram o país para capturar Osama Bin Laden e enfraquecer a Al-Qaeda. O que parecia uma guerra rápida, no entanto, tornou-se uma tentativa mal sucedida de construir uma nação.

Apesar dos muitos erros políticos e militares dos EUA no país e um crescente consenso de que mais cedo ou mais tarde eles teriam de deixar o Afeganistão, não é sem motivos que tantos temem a volta dos talibãs. Enquanto estiveram no poder, os talibãs aplicaram uma versão bastante radical da sharia, a lei islâmica. Nesse período, as mulheres eram proibidas de estudar e não podiam sair às ruas sem estarem usando uma burca que cobrisse todo o corpo e estarem acompanhadas de um homem. Minorias religiosas e membros da comunidade LGBTQIA+ eram perseguidos e mortos. Um símbolo do horror do Talibã é a ativista e Nobel da Paz Malala Yousafzai, que em 2012 sofreu um tiro na cabeça em atentado impetrado pelo grupo, quando ia para a escola, desafiando as proibições do grupo.

Logo, é totalmente compreensível e louvável a preocupação com o futuro das mulheres e meninas afegãs, bem como da comunidade LGBTQIA+. Eu mesmo partilho delas. Porém, há algumas minorias que têm sido esquecidas no debate sobre direitos humanos no Afeganistão. As mesmas minorias que também são esquecidas em outras crises humanitárias e que geralmente ficam de fora das políticas especiais da ONU e suas agências para grupos mais vulneráveis. São as minorias religiosas. Tenho percebido isso em primeira mão nos últimos anos ao pesquisar sobre refugiados.

Em 2016 e em 2017, no auge da crise gerada pela ascensão do Estado Islâmico no Iraque e na Síria, realizei pesquisa de campo para minha dissertação de mestrado no Líbano e na Jordânia. Nos dois países tive a oportunidade de conversar com cristãos iraquianos que haviam sido obrigados a deixar suas casas em virtude da ação dos grupos terroristas. Todas as pessoas com quem eu conversei relataram o mesmo problema: a falta de medidas especiais de proteção por parte da comunidade internacional, apesar de a perseguição religiosa ser considerada uma violação do Artigo 18 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e ser uma das causas que tornam alguém elegível ao status de refugiado segundo a Convenção de Genebra de 1951 sobre o tema.

Os cristãos iraquianos queixavam-se, por exemplo, de serem excluídos da maior parte das ações do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), uma vez que não se sentiam seguros para buscar ajuda da agência da ONU pelo fato de os funcionários locais serem muçulmanos. Para eles, ir para campos de refugiados administrados pelo Acnur, como o Zaatari, na fronteira com a Síria, era impensável, devido ao temor de viverem em um contexto em que seriam novamente uma minoria. Logo, preferiam viver como migrantes irregulares no Líbano e na Jordânia, onde ao menos estariam próximos de outras comunidades cristãs.

O grande problema disso tudo é que, ao não buscarem o status oficial de refugiados, mesmo tendo direito a ele, esses cristãos ficavam de fora dos principais programas internacionais de assistência social. E, pior ainda, eram praticamente excluídos das chances de serem reassentados em países como EUA e Canadá, que usam como critério principal de admissão o reconhecimento prévio da condição de refugiado pelo Acnur. Essas dificuldades, porém, não são exclusivas aos cristãos. Basta ver a situação dos yazidis, que também foram vítimas de uma tentativa de genocídio por parte do Estado Islâmico em 2014. Estima-se que cerca de 3 mil mulheres yazidis, sequestradas e vendidas como escravas sexuais, ainda estejam desaparecidas. Muitas outras permanecem hoje em campos para deslocados forçados no Oriente Médio, vivendo lado ao lado com os seus principais algozes.

Faço questão de mencionar a experiência das minorias religiosas iraquianas porque grande parte do seu sofrimento também se deu devido à ascensão de grupos terroristas islâmicos após intervenções militares mal sucedidas dos EUA. Os americanos invadiram o Iraque em 2003 e saíram em 2011, deixando para trás uma situação, em muitos níveis, pior do que haviam encontrado. Tudo isso me faz pensar com temor e pesar sobre o futuro das minorias religiosas afegãs.

De acordo com o último relatório da US Commission for Religious Freedom (USCIRF) – organização bipartidária do governo americano para promoção internacional da liberdade religiosa –, em 2020 a população afegã era 99,7% muçulmana (84,7 a 89,7% sunitas e 10% a 15% xiitas). Os outros 0,3% eram compostos por hindus, sikhs, baha’is, cristãos, budistas, zoroastras e um único judeu – o qual, inclusive, já afirmou que não deixará o país mesmo agora que o Talibã retornou ao poder. A maioria dos cristãos é formada por ex-muçulmanos que foram evangelizados por missionários ocidentais quando os EUA ainda estavam no país e vivem sem segredo, nas chamadas igrejas subterrâneas. Muitos deles já receberam ameaças do Talibã e não têm para onde ir, já que as fronteiras estão fechadas e não existe mais uma embaixada dos EUA onde eles poderiam requerer refúgio.

O problema dos refugiados afegãos, infelizmente, é antigo. Assim como no caso dos iraquianos, intensificou-se principalmente depois das intervenções militares dos EUA. De acordo com o Acnur, há cerca de 3,5 milhões de deslocados forçados afegãos, 2 milhões deles já com status de refugiados. 90% deles encontram-se nos vizinhos Irã e Paquistão. Desde janeiro, porém, cerca de 230 mil afegãos já se tornaram refugiados. O Acnur estima que esses números possam aumentar ainda mais agora que os EUA retiraram as tropas do Afeganistão. O grande questionamento é: quais países receberão esses refugiados?

Os ativistas de direitos humanos têm de priorizar as minorias religiosas assim como o fazem em relação às mulheres e pessoas LGBTQIA+

Nem o Irã e nem o Paquistão são opções seguras para os cristãos e as minorias religiosas. Muito pelo contrário. Em ambos, tanto cristãos quanto baha’ís, por exemplo, têm uma série de direitos humanos violados, buscando, inclusive, refúgio em outros países. Conheço pessoalmente vários cristãos paquistaneses que foram obrigados a fugir de suas casas e, assim como os cristãos iraquianos, também tiveram inúmeros problemas para obter o status de refugiados. A maioria dos que fogem do Paquistão passam a viver como imigrantes irregulares em países asiáticos como Tailândia e Sri Lanka, os quais não assinam tratados internacionais de refúgio e constantemente deportam essas pessoas para o país de origem, onde a morte é certa.

À luz disso tudo, fica claro que a ONU precisa criar políticas específicas para essas pessoas, priorizando-as nas vagas de reassentamento no Ocidente. Os ativistas de direitos humanos têm de priorizar as minorias religiosas assim como o fazem em relação às mulheres e pessoas LGBTQIA+. Mas por que não o fazem? Há muitos motivos. Creio que nem todos dizem respeito a preconceitos com o Cristianismo, já que nem sempre as minorias religiosas em perigo são os cristãos, como nos lembram os yazidis no Iraque, os baha’ís no Irã, os muçulmanos em Myanmar e até os membros das religiões de matriz africana no Brasil.

Penso que a raiz do problema encontra-se no secularismo predominante em instituições internacionais e na própria disciplina acadêmica de Relações Internacionais (RI). Um dos marcos da política internacional contemporânea é a chamada Paz de Westfália. O tratado, assinado em 1648, pôs fim aos conflitos religiosos que marcaram a Europa e tornou o secularismo uma característica importante do recém-criado sistema de Estados. Esse elemento foi exportado para o resto do mundo juntamente com outras instituições ocidentais que caracterizam o que hoje os teóricos da Escola Inglesa de RI classificariam como “sociedade internacional”. É como se a rejeição da religião fosse um elemento intrínseco às RI, uma vez que o seu surgimento, bem como o dos elementos que a compõem, está diretamente atrelado à ascensão da modernidade secular na Europa dos séculos 16 e 17.

A perseguição religiosa é considerada uma violação do Artigo 18 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e uma das causas que tornam alguém elegível ao status de refugiado segundo a Convenção de Genebra de 1951 sobre o tema

Atualmente, vários acadêmicos contestam essas premissas e lutam para mudá-las – eu, inclusive –, entendendo as mudanças positivas que poderão ocorrer no âmbito político a partir do momento em que os tomadores de decisões e formuladores de políticas públicas tiverem contato com novas teorias de RI. Embora a religião, como qualquer ideologia, possa ser usada para fins maléficos, há vários exemplos ao longo da história em que ela foi usada para trazer transformações positivas para o mundo, sendo uma força para a paz e não para a guerra.

Nesse sentido, acredito que grande parte da atenção dada hoje à situação das mulheres no Afeganistão pode ser atribuída aos esforços das feministas no âmbito da disciplina de RI. Apesar das críticas que se possa ter a alguns movimentos feministas, principalmente entre os cristãos, precisamos reconhecer que foi a atuação de muitas acadêmicas na década de 1990 que contribuiu para que casos de estupro como arma de guerra e outras formas de violência contra a mulher passassem a ser debatidos em fóruns internacionais.

Talvez, o que precisemos fazer nesse momento, caso queiramos ajudar os nossos irmãos perseguidos não apenas no Afeganistão, mas ao redor do mundo como um todo, é lembrar o quanto a liberdade religiosa é importante. Para isso, devemos considerá-la não uma mera questão de “guerra cultural”. É preciso entendê-la como um direito humano inalienável, presente em vários mecanismos internacionais, os quais, embora hoje enfraquecidos, diretamente influenciados por ideologias pós-cristãs, tiveram como base verdades essenciais do Cristianismo. Dentre elas, o fato de que todos nós fomos criados à imagem e semelhança de Deus. Logo, devemos nos preocupar com todas as minorias religiosas. A perseguição e o sofrimento que os hindus e os baha’ís enfrentarão no Afeganistão será tão terrível quanto a sofrida pelos cristãos.

Igor Sabino é bacharel e mestre em Relações Internacionais e doutorando em Ciência Política, autor do livro “Por Amor Aos Patriarcas: reflexões brasileiras sobre e antissemitismo e sionismo cristãos”, líder do Philos Brasil e pesquisa sobre temas relacionados a religião e política internacional, em especial refugiados, política externa dos EUA para o Oriente Médio e antissemitismo.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]