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Detalhe de “A Sétima Praga do Egito”, de John Martin.
Detalhe de “A Sétima Praga do Egito”, de John Martin.| Foto: Museum of Fine Arts Boston/Domínio público

O que significa ser monoteísta no mundo moderno? Em particular, o que isso significa para a política moderna?

A questão do monoteísmo tem, naturalmente, o seu substrato ontológico: se Deus existe e é único, e se o teísmo é a visão de mundo correspondente à realidade, ser monoteísta é ser, pura e simplesmente, racional.

Se for possível provar a existência de Deus racionalmente, tanto melhor para estabelecer essa visão. Alguns filósofos seguem esse caminho, como Richard Swinburne ou William Lane Craig. Se isso for pedir demais, como alegam alguns (não tanto por carência de argumentos, mas por suspeitas contra um excesso de fé na razão), talvez seja possível demonstrar ao menos a racionalidade e a superioridade do teísmo como sistema, por sua capacidade de iluminar a vida. Confesso minha simpatia por essa segunda alternativa; é o caminho de gente como C. S. Lewis e Alister McGrath. E há ainda uma terceira alternativa: a demonstração da racionalidade do ato de crer em Deus; ou seja, a adequação da fé às nossas funções cognitivas normais. Aqui o filósofo Alvin Plantinga, carinhosamente apelidado “o teísta analítico”, me parece imbatível.

Mas as elucubrações filosóficas dos modernos ou mesmo dos medievais estão bem longe do mundo hebreu e das preocupações do Pentateuco. A questão para eles não era epistemológica ou ontológica, mas moral e religiosa. Era uma polêmica sobre as devoções humanas.

O monoteísmo emergiu como a negação espiritual daquelas civilizações antigas; que, como sabemos, não tinham apenas seus universos cheios de deuses, mas universos fragmentados, com diversas forças divinas em guerra umas contra as outras

Quando os hebreus receberam o decálogo, através de Moisés, sua jornada abandonava o Egito, com seus deuses, e encarava à sua frente o mundo cananeu, com seu panteão alternativo. O monoteísmo chegou assim, como um monólito no céu, um meteorito, uma invasão alienígena em um mundo politeísta, assombrado por divindades de todas as formas e tamanhos.

Nesse sentido o monoteísmo mosaico e hebreu representava um grande “não”, no mundo da época; uma espécie de ateísmo qualificado. O monoteísmo emergiu como a negação espiritual daquelas civilizações antigas; que, como sabemos, não tinham apenas seus universos cheios de deuses, mas universos fragmentados, com diversas forças divinas em guerra umas contra as outras, exceto quando pacificadas pela potência, sagacidade e vontade de uma divindade tirânica. Esses deuses eram, como sabemos, projeções de forças da natureza, notoriamente aquelas ligadas à fertilidade, como os céus e as chuvas, a lua e as estrelas, o sol e o sexo; ou projeções de potências da alma ou da sociedade, como a sabedoria, o amor ou a guerra.

É assim que os poderosos, no mundo antigo, eram portadores da imagem divina, como o Faraó egípcio, filho de Amon-Rá, ou como se viam os reis das centenas de cidades-Estado no Crescente Fértil. E, como os grandes deuses impunham seu governo sobre deuses menores, os reis governavam com mão forte os seus súditos e escravos.

No caso do Egito conhecemos muito bem a história: seus deuses sustentavam uma ordem social inteira, como o fundamento espiritual daquela civilização, afirmando que essa ordem era boa. E é assim que o Deus de Abraão, de Isaac e Jacó, o Deus da sarça ardente no deserto, apareceu para humilhar os deuses do Egito e, em última instância, solapar aquela bela civilização. O monoteísmo era a subversão.

Releia os primeiros capítulos do Êxodo – o que, ademais, é um exercício muito apropriado para a Quaresma e em preparação para a Páscoa, daqui a poucos dias – e você encontrará Yahweh subvertendo o Nilo, transformando o pó do Egito em piolhos, escurecendo o sol, enviando doenças e gafanhotos, tudo à revelia dos deuses egípcios. O golpe final foi, naturalmente, a “morte dos primogênitos”. Um faraó do Egito havia lançado os filhos das hebreias no Rio Nilo, e agora chegava o juízo divino, levando consigo o primogênito do próprio Faraó: “Então dirás ao faraó: Assim diz o Senhor: Israel é meu filho, meu primogênito; e eu te disse: Deixa meu filho ir, para que me cultue. Mas recusaste deixá-lo ir. Por isso, matarei o teu filho primogênito” (Êxodo 4,22-23).

Todos sabemos o motivo pelo qual Deus se dispôs a lutar contra Faraó e os deuses do Egito: é que eles eram os pilares de sustentação moral de um sistema escravagista e genocida. O Egito havia acomodado em si a ideia de matar e escravizar os filhos de Deus, e a religião egípcia estava integralmente comprometida com a legitimação dessa opressão dos hebreus. O golpe mortal não foi apenas contra os primogênitos; foi contra Amon-Rá.

O Deus de Abraão, de Isaac e Jacó, o Deus da sarça ardente no deserto, apareceu para humilhar os deuses do Egito e, em última instância, solapar aquela bela civilização. O monoteísmo era a subversão

Dar a devida atenção a esse fato ajuda a esclarecer o que está em jogo no primeiro mandamento: de algum modo a civilização traz, implicitamente, um sistema de deuses, um panteão. As histórias sobre esse panteão são também as histórias que sustentam sua organização interna. Adoração religiosa e ética social se pertencem, se interpenetram, como dois lados da mesma moeda.

É assim, então, que o advento do monoteísmo torna necessária a formação de outra nação, de outra pátria. Abraão e seus filhos vagaram por anos a fio em Canaã, peregrinando em busca de uma “outra cidade”, segundo a interpretação dada pela Carta aos Hebreus, no Novo Testamento. Outro Deus significa outra ordem, outro mundo e outra pátria. Sendo os hebreus libertos do Egito, “batizados” na travessia do Mar Vermelho, no qual se afogou a velha sociedade, são levados ao Sinai para receberem de Deus um novo destino e uma nova lei. Uma nação começa a se formar: uma federação de tribos, com uma lei constitucional, um território e uma missão histórica.

E a natureza dessa ordem brota de suas histórias (ou “mitos”) fundadoras: as promessas patriarcais, um Deus que se importa com escravos e que os salva da injustiça e da tirania, uma aliança de fidelidade, amor e compromisso, uma lei na qual os direitos dos outros devem ser respeitados, para que o sistema do Egito nunca mais se repita, e o fraco não seja novamente escravizado. Aqui entram, naturalmente, os Dez Mandamentos e o conjunto da sabedoria do Pentateuco.

Por conseguinte, o monoteísmo é um grande “não!”, mas também é um grande “sim!”. Um “não” é dito ao politeísmo, à idolatria e ao modo de civilização que neles se baseia, mas um “sim” é dito ao novo mundo que o Deus único criará em Canaã, “a terra que mana leite e mel”. Um “sim” é dado a outra divindade, a outras devoções e a outro sistema de vida.

Com isso temos os fatos básicos para entender o que implica a posição monoteísta. Não meramente a posição de um monoteísmo filosófico, abstrato e deísta, mas a posição do monoteísmo histórico, hebreu e em seguida cristão, radicado em Abraão e Moisés. O que ela implica é uma cidadania. Toda cidadania é, no seu âmago, um sistema de devoções. Como foi muito bem traduzido por Santo Agostinho no século 5.º, em sua obra A Cidade de Deus. Abraçar o monoteísmo é abraçar o projeto do Deus único, de uma sociedade teocêntrica e governada pela paz, ou Shalom divina.

Quero destacar o elemento disruptivo dessa fé. É claro que Deus desanca algumas práticas sociais e legitima outras; os cultos de fertilidade e o sacrifício de crianças, por exemplo, serão banidos por Yahweh. O reino davídico será vindicado, ainda que não incondicionalmente (pois o Senhor pune Davi e sua descendência por seus pecados). Deus não é a negação de toda e qualquer ordem social.

O monoteísta é um conservador, no sentido de que deseja recuperar a ordem da vida segundo a vontade do Criador; mas é um crítico social, um progressista e até um revolucionário diante da ordem imperial

Mas mesmo dentro da melhor sociedade que pudermos construir ela permanecerá disruptiva, porque os mundos humanos caem sob permanente julgamento a partir dos critérios divinos de justiça. A todo tempo profetas se seguem, a exemplo de Moisés, atormentando os reis, príncipes e juízes hebreus com seus oráculos de juízo e de salvação, comparando a qualidade de seus governos com o Egito, com Sodoma e Gomorra, ou com os povos cananeus, e convocando a nação ao arrependimento. E assim os hebreus passaram sua história sendo arrastados pelo deserto da falibilidade humana em uma dura peregrinação rumo a uma nova sociedade na qual a justiça e a paz prevalecerão. Sua peregrinação é a sua educação para outras devoções. Dessa jornada nasceria a esperança messiânica, culminando com Jesus Cristo.

Isso era muito diferente dos antigos mundos pagãos, nos quais os deuses mantinham a ordem estabelecida e... ponto final. Deus, segundo Moisés, realmente estabeleceu uma ordem divina, no princípio do mundo; mas, sendo o Senhor dessa ordem, ele mesmo a lança contra os sistemas imperiais e predatórios. A ordem criada e divina jamais poderá ser reduzida ao sistema imperial, à ordem de Babel, porque a ordem imperial é, no fundo, uma desordem moral estabelecida pelo costume e pela força bruta. Só o reinado vindouro de Cristo finalmente reunirá ordem criada e sistema social.

O monoteísta, então, é um conservador, no sentido de que deseja recuperar a ordem da vida segundo a vontade do Criador; mas é um crítico social, um progressista e até um revolucionário diante da ordem imperial, dos trabalhos forçados e das idolatrias que ela quer impor sobre o povo de Deus.

“Então Deus falou todas estas palavras:
Eu sou o Senhor teu Deus, que te tirou da terra do Egito, da casa da escravidão.
Não terás outros deuses além de mim.” (Êxodo 20,1-3)

Percebem? Moisés perguntou, na visão da sarça ardente, “em nome de quem” ele falaria aos hebreus e aos egípcios. Deus respondeu, àquela altura, “eu sou o que sou”, ou “eu sou o que serei”. É como se Deus dissesse que ele só poderia ser conhecido através de uma caminhada com ele, através de sua biografia. Agora, depois do Mar Vermelho, o nome de Deus ganha um conteúdo histórico e positivo: “Eu Sou o Senhor teu Deus que te tirou da terra do Egito, da casa da escravidão”. Deus é o ponto final, o término, a obsolescência do sistema egípcio, e o começo de uma coisa nova.

Monoteísmo, então, é esperança; é a paciente peregrinação rumo ao novo mundo de Deus, e a coragem para abandonar as “cebolas e alhos do Egito”, os benefícios e alívios temporários produzidos pela idolatria. Porque para abandonar deuses falsos e seus falsos confortos é necessário ter esperança.

Certamente, de tudo o que eu disse até aqui, alguém poderia pensar que o monoteísmo se reduz, então, ao projeto de uma sociedade teocêntrica. Alguns já se lembrarão, apavorados, dos perigos do fundamentalismo e da teocracia. Convenhamos, teocracias no mundo de hoje só podem mesmo ser pseudoteocracias, nas quais a tirania de um homem se mascara com a face divina. Cristãos não devem ter absolutamente nada com tais maluquices. No entanto, o fato é que os cristãos oram todos os dias a oração de Jesus: “venha a nós o teu Reino, seja feita a tua vontade, assim na terra como no Céu”. Um dia a verdadeira teocracia será estabelecida pelo próprio Cristo ressurreto, e a ciência política laica será uma memória distante.

Ser uma comunidade monoteísta num mundo politeísta é ser uma comunidade descrente e disruptiva. É uma comunidade que não tem certos deuses e que, por isso, recusa suas respectivas devoções sociais

Mas enquanto esse tempo não chega, não cabe aos cristãos instaurar teocracias “no muque”. A comunidade dos cristãos deve ser muito mais como uma embaixada política entre as nações, cumprindo funções similares às dos profetas bíblicos no Antigo Testamento. Mas isso, meus amigos, não é pouco. O caso é que, como embaixadas do futuro, postos avançados do Reino de Deus no meio do império, temos a obrigação de viver sob as leis da nossa pátria que é... a pátria monoteísta, a Civitas Dei agostiniana. E construir essa comunidade peregrina, essa embaixada ambulante, é formar pessoas com devoções muito diferentes das devoções do mundo “laico”.

Eu gostaria de ser o mais claro possível aqui: ser uma comunidade monoteísta num mundo politeísta é ser uma comunidade descrente e disruptiva. É uma comunidade que não tem certos deuses e que, por isso, recusa suas respectivas devoções sociais. O monoteísmo político, por conseguinte, trabalhará contra o domínio social desses falsos deuses, promovendo devoções e práticas sociais para um mundo novo.

Eu gostaria de destacar que essa tarefa é um imperativo moral. O caso é que a marca dos deuses falsos é sua legitimação da escravidão, e a fé nos põe em rota de colisão com esses falsos deuses. A predação do meio ambiente, a exploração capitalista do trabalho (agora na forma subjetiva, tão bem descrita por Byung Chul-Han em A Sociedade do Cansaço), o descuido pelo pobre, a revolução sexual e o desmantelamento da família, a indústria pornográfica, a exploração da imaginação sexual pela cultura pop (inacreditavelmente celebrando “feitos” como o último clipe da cantora Anitta), e tantas outras enfermidades sociais e morais são testemunhas contra o sistema de valores do mundo moderno.

Seja Amon-Rá, a Democracia Liberal, Baal ou o Progresso, ou a Felicidade Sexual, são todos igualmente fantasmagóricos, hipertrofias de bens comuns, projeções coletivas de suas civilizações

“Por que é necessário fazer experimentos com células-tronco de fetos? Porque... o progresso científico.” “Por que é necessário legalizar a indústria do sexo? Porque... a liberdade individual.” “Por que é necessário destruir o direito de família? Porque... a felicidade afetiva.” “Por que é necessário afirmar que todas as religiões são moralmente equivalentes? Porque... o pluralismo democrático.” “Por que legalizar o aborto? Porque... o sexo deve ser ilimitado.” “Por que destruir o sistema de fiscalização ambiental? Porque... o crescimento econômico deve ser ilimitado.” E por aí vai.

Nosso mundo moderno e secular pode até ser “laico”, do ponto de vista dos deuses sobrenaturais, mas não tem nada de “laico” do ponto de vista de suas devoções supremas. Por trás de nossas mazelas morais e sociais estão nossos valores e, no coração dos nossos valores, os nossos deuses. Os deuses da felicidade e do bem-estar individual, do dinheiro, da máxima segurança por meio do controle, do sexo, da emancipação moral absoluta, do progresso técnico e econômico a qualquer custo. Não importa se os deuses modernos não são entidades sobrenaturais; seja Amon-Rá, a Democracia Liberal, Baal ou o Progresso, ou a Felicidade Sexual, são todos igualmente fantasmagóricos, hipertrofias de bens comuns, projeções coletivas de suas civilizações.

Verdadeiro é apenas o Deus que liberta os escravos e os faz amar o bem.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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