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Bob Goudzwaard em 1976.
Bob Goudzwaard em 1976.| Foto: Bert Verhoeff/Anefo/Dutch National Archinves/Domínio público

Os últimos dias mostraram que o novo governo já nasceu velho. Pouca inovação e mais do mesmo, um presidente desgovernado, um plano de vingança política e o parlamento fervendo. Prometeram um paraíso, mas o inferno arde em Brasília. Essa flor, o petismo.

Graças a Deus, temos já outro governo que começou há quase 2 mil anos e que, se o profeta estiver certo, não terá fim. No tempo certo, sua marcha desbancará todas as imitações progressistas do paraíso. E, com a Páscoa chegando, volto a atenção para esse tema que é um dos melhores: a Esperança cristã e seu sentido político.

Mas, para não perder o costume, vou retomar o assunto pela via do contraste, do chiaroscuro: primeiro as distorções da esperança, avançando depois para a esperança, e então para a ética da esperança. Tomando a sopa quente pelas beiradas.

Jesus Cristo advertiu fortemente os seus discípulos sobre a necessidade de vigiar, “porque não sabeis a hora em que virá o Filho do Homem”. A vigilância é uma disciplina de atenção e paciência, e ao mesmo tempo de viva expectativa messiânica.

A fé no progresso nasceu em berço cristão, mas logo se mostrou uma concorrente do cristianismo

Pois bem; o desafio espiritual da vigilância cristã encontrou, na modernidade, um novo e formidável desafio: a emergência da ideologia do progresso. Nas palavras de N. T. Wright, trata-se da crença de que “o projeto humano (na verdade, o projeto cósmico) continuaria a crescer e a se desenvolver, levando a um progresso ilimitado em direção à utopia”. O problema com esse “mito”, profundamente enraizado na cultura contemporânea, é que suas raízes incluem o próprio cristianismo. A fé no progresso nasceu em berço cristão, mas logo se mostrou uma concorrente do cristianismo. Isso gera um problema novo para a igreja: além de se firmar na esperança bíblica, ela precisa distinguir-se das falsas esperanças modernas.

Para explorar o tema recorro a dois pensadores holandeses, ambos pertencentes à mesma escola teológico-filosófica: a assim-chamada “filosofia de Amsterdã”, ou filosofia do neocalvinismo. Bob Goudzwaard e Egbert Schuurman são cristãos reformados, professores universitários e políticos atuantes. Conheci ambos pessoalmente, e estive algumas vezes na casa de Schuurman.

O mais importante estudo já produzido sobre a ideologia do progresso sob uma perspectiva calvinista foi o trabalho do economista e senador holandês Bob Goudzwaard, Capitalismo e Progresso (Ultimato, 2019), originalmente lançado em 1979. Para ele, mais do que uma ideia ou uma estrutura, a crença moderna no progresso mostra o caráter de uma religião; é algo supremo, inquestionável e pervasivo, influenciando o conjunto das atividades humanas. Essa fé está intimamente associada tanto ao capitalismo moderno quanto à alegada alternativa socialista, que bebe da mesma fé no progresso – sua teoria do capitalismo poderia ser descrita, sob certo aspecto, como culturalista: a ordem social e a própria economia são expressões da cultura.

Assim ele demonstra que a fé no progresso não poderia se desenvolver sem a derrubada de uma série de barreiras espirituais, a partir do Renascimento: a expectativa do céu, a ética econômica da Igreja medieval, e a crença tradicional na Providência de Deus, que é primeiro transformada e confundida com lógica interna das trocas econômicas, justificando um espírito utilitarista, e em seguida substituída pela autodeterminação humana. Mas a barreira final é derrubada quando nos aproximamos do Iluminismo, com o fim da noção de um paraíso perdido: o pecado e a maldição original são negados, a fruição da vida terrena per se é legitimada, um novo telos é promulgado – a máxima felicidade terrena – e um novo caminho para a felicidade é estabelecido: a razão e a indústria humana.

O que está em desenvolvimento é uma nova imagem do paraíso, cujas versões se multiplicam em autores como Thomas More (Utopia, 1516), Francis Bacon (Nova Atlântida, 1627), Charles Fourier (O Novo Mundo Industrial e Societário, 1829) e em Karl Marx. Mas essa imagem já alcança seu pleno florescimento no Iluminismo. Em uma interessantíssima discussão a respeito dessa nova esperança, Goudzwaard exemplifica o ponto com as ideias do Marquês de Condorcet (1743-1794), em seu Esboço de um Quadro Histórico dos Progressos do Espírito Humano, publicado em 1795:

“É fascinante ver como Condorcet, no seu esboço do progresso humano, começa a partir de uma típica colocação renascentista que também encontramos nos economistas clássicos, ou seja, a da luta do homem com a natureza. Condorcet vê essa luta como a origem de todo o progresso humano; isso porque, nessa batalha, com a ajuda da razão, o homem obtém vitória após vitória sobre a natureza que resiste à dominação com todas as suas forças – mas em vão. O homem obtém controle técnico-científico efetivo sobre todos os processos naturais. Além disso, dada a sua razão crítica, ele é capaz de cortar seus laços com o passado, rompendo com todas as tradições herdadas e com todos os rígidos costumes da civilização humana. Contudo, esse progresso não ocorre à parte ou para além da natureza mais essencial do próprio homem. Pelo contrário – e nesse ponto encontramos um elemento novo e decididamente moderno – a própria essência do homem muda e se desenvolve nessa batalha com a natureza... A história é o palco da humanização do homem, do seu tornar-se homem [...].

Portanto, o progresso não é apenas feito pelo homem; ele também ocorre no homem. De acordo com Condorcet, a natureza ‘não colocou limites à perfeição das faculdades humanas’. Assim, ele profetiza que um verdadeiro milênio aguarda a humanidade, uma sociedade perfeita na qual ‘a raça humana, livre de seus grilhões, afastada do império do acaso assim como dos inimigos do Progresso, andaria a passos firmes no caminho da verdade, da virtude e da alegria’.”

Para Bob Goudzwaard, mais do que uma ideia ou uma estrutura, a crença moderna no progresso mostra o caráter de uma religião; essa fé está intimamente associada tanto ao capitalismo moderno quanto à alegada alternativa socialista

Fascinante, de fato; temos aqui com clareza transparente os temas básicos que guiam o desenvolvimento da cultura ocidental: a guerra contra a natureza, contra a história e contra a própria natureza humana, que deve ser aperfeiçoada, e a fé em um paraíso futuro, completamente terreno. As profecias de Condorcet e de outros iluministas estão consagradas e incorporadas, hoje, nas noções típicas de “progresso civilizatório” que dominam a imaginação moral e política das elites cosmopolitas em todo o Ocidente, incluindo o Brasil; mas principalmente – é forçoso admitir – das ideologias progressistas, que apenas adicionam aí uma ou outra explanação dialética ou agonística a respeito dos motores da transformação histórica. E mesmo quando o otimismo típico da modernidade primitiva está ausente, a fé no progresso está presente como uma ética, ou uma fé moral com a construção do paraíso.

A fé no progresso envolve, então, um profundo anseio emancipatório e revolucionário, em luta contra a natureza e a tradição, e também uma profunda crença na razão e na indústria humana. Goudzwaard procura mostrar – corretamente, em meu julgamento – que essas crenças existem, de modos diferentes, tanto entre os defensores do capitalismo quanto em seus oponentes. Eles divergem, fundamentalmente, sobre a função do sistema de produção capitalista na jornada humana. Segundo a minha própria percepção, os progressistas de “direita” acreditam em um gradualismo e no livre mercado como caminho para o paraíso terrestre, e os progressistas de “esquerda”, incapazes de abolir o sistema, dedicam-se a solapá-lo desconstruindo os valores tradicionais e construindo um Novo Homem a partir da hegemonia cultural.

Qual é, então, o seu ponto de convergência? O trabalho de Goudzwaard coloca todo o foco sobre o capitalismo moderno, como a força que legitima e dissemina a religião do progresso. Mas outro intelectual cristão apresentou uma contribuição distinta e muito relevante: Egbert Schuurman, também ex-membro do Senado holandês e sucessor de Goudzwaard na liderança da ChristenUnie. No livro Fé, Esperança e Tecnologia (Ultimato, 2016), comentando os problemas econômicos e sociais provocados pela priorização do avanço tecnológico na antiga União Soviética, ele observa:

“Do mesmo modo, quando hoje se identifica a economia de mercado liberal – isto é, o capitalismo – como sendo a causa de tantos problemas, essa análise é inadequada. Tal análise, e especialmente aquela à qual Bob Goudzwaard devotou tanta atenção, seria de fato interessante. Entretanto, creio que o ideal de controle técnico opera por trás do capitalismo. A atual economia de mercado liberal somente se faz possível graças ao forte impulso para se alcançar o controle técnico. Em outras palavras, o tecnicismo dá vida ao capitalismo.”

O problema, então, seria que a ascensão do ideal de personalidade livre e da nova imagem do paraíso terreno colocam o poder e a responsabilidade da salvação sobre o próprio homem, em seu trabalho cultural: tenho um novo destino, e cabe a mim alcançá-lo. O ideal de controle tecnocientífico da natureza e da sociedade é a crença de que é possível construir um paraíso terrestre, e essa crença no coração da fé no progresso: “a fé na ciência é, ao mesmo tempo, a crença num controle técnico da realidade e de seus problemas. Uma vez que as pessoas esperam um progresso material por meio dessa crença, a crença no controle é acompanhada por uma crença no progresso”. Não é difícil notar que, nesse ponto, capitalistas investindo pesadamente em ciência para mudar o mundo, progressistas que descrevem o ser humano como Homo faber elutam para revolucionar a cultura, e transumanistas que esperam a transformação da natureza humana através da tecnologia estão todos na mesma página. Espiritualmente, o ideal de progresso é uma espécie de salvação pelas obras, sem a graça de Deus.

Essa crença no controle tecnocientífico domina vários campos da vida moderna; não apenas a ciência básica e a tecnologia industrial, mas a tecnologia médica, a psicologia, as ciências sociais, o direito e os estudos sobre Direitos Humanos, e a política pública baseada em evidências. Mas seu problema central não reside na mera busca de melhoramentos e aperfeiçoamentos – o que é perfeitamente legítimo –, mas sim na tese de que é possível ao ser humano transcender natureza e produzir transcendência dentro da história. Pois essa crença permite aos seres humanos transgredir regras morais em nome do “progresso”. É a mesma crença de Condorcet, na perfectibilidade humana e na possibilidade do paraíso terrestre. Essa crença é que transforma o que seria “a glória das nações”, que deveria ser consagrada apenas a Deus, em maldição para o planeta Terra e para o coração humano.

Eu não precisaria dizer que essa mesma crença sempre esteve alojada no coração do progressismo nacional, e em todo o seu discurso sobre o processo civilizatório. Mas contemporaneamente, essa expectativa de um Novo Homem autocriado se mostra com a maior nitidez nos projetos de educação e de Direitos Humanos das democracias liberais-progressistas em todo o Ocidente e no próprio Brasil. Aparentemente, as apostas quanto ao paraíso antropocêntrico migraram da antiga expectativa em uma superação do capitalismo para uma alternativa mais modesta e aparentemente mais factível: a produção da felicidade de cada indivíduo, de forma igualitária, por meio desse mesmo sistema combinado de capitalismo e tecnicismo. Mas esse será o assunto de outro artigo.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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