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Durante visita ao Rio Grande do Norte, Bolsonaro abaixou a máscara de uma criança que pegara no colo.
Durante visita ao Rio Grande do Norte, Bolsonaro abaixou a máscara de uma criança que pegara no colo.| Foto: Marcos Corrêa/Presidência da República (foto alterada digitalmente para preservar a identidade da criança)

Ontem o presidente tirou a máscara, de novo.

Todo mundo tira a máscara, um dia. Na verdade, se a gente repara bem, todo mundo deixa a máscara cair, e diariamente, sem falha. A gente tira querendo, com vontade e caráter, ou sem querer mesmo, como Raskolnikov diante do inspetor Petrovitch. Bolsonaro tira a máscara todos os dias, sem querer e querendo também, com vontade, fortiter, na frente das câmeras, no cercadinho, onde puder – o seu caráter, julgue-o como queira.

Mas ontem foi outra máscara. Sim, foi a máscara de uma criança, mas foi mais do que isso. Ontem vimos o símbolo, o anel no dedo, as bodas, o sacramento de uma existência, o sumário da história brasileira, de 10 de março de 2020 a 24 de junho de 2021.

Alguém pôs a máscara naquela criança: primeiro, os pais, evidentemente. Os pais puseram a máscara não se sabe por quê, se por medo da opinião pública, da opinião dos amigos, do conselho tutelar, ou talvez por convicção, para proteger a criança, para defendê-la dos germes, mas não faz sentido, não cabe, não se protege crianças de germes levando-as ao nosso mandatário!

Ovacionado, amado, crido e adorado, Messias contempla a criança e dá uma puxadinha na máscara. Uma puxadinha só. É a bênção do Jair!

Com vontade ou sem querer, puseram o trem no menino porque os deuses lhes ordenaram. Porque a “ciência”, porque a OMS, porque o decreto da prefeitura, porque o Ministério da Saúde, porque o padre, porque o tio, porque a mídia, porque o jornalista, porque a Globo, porque o mundo e sim, os deuses: o peso psíquico e a coerção moral da sociedade forçaram a mão dos pobres pais, pobrezinhos, forçaram a máscara naquele inocente rosto infantil.

Mas eis que seu Messias entra em cena! Toma a criança nos braços, para abençoá-la, para dar-lhe seu melhor, e mesmo que não fosse, político que não pega criança no colo não vinga. De que adianta tirar foto sem tirar a máscara? Não é essa a grande chance, o grande momento daquela família? Quem poderia reprovar tal gesto? Quem já não tirou a máscara na hora da foto (não nego)? Ovacionado, amado, crido e adorado, Messias contempla a criança e dá uma puxadinha na máscara. Uma puxadinha só. É a bênção do Jair!

A bem da verdade, não penso que ele quis mal à criança. Nem quis o mal, intencionalmente, aos 100 mil, ou talvez 200 mil mortos a mais, na pandemia, cujas mortes poderiam ter sido evitadas com uma boa política de saúde. Ele apenas não quis... nada. Ele não quis.

No gesto trivial, Messias arranca a máscara que a sociedade pôs na criança, e com ela vem tudo: o casaco, as calças e a roupa de baixo, estamos todos nus ao relento, nus na tevê, nus em todas as mídias sociais. Não é qualquer um que tira a máscara para a foto; é o número um, o símbolo nacional. Desautorizada a OMS, a prefeitura, o Ministério da Saúde, o padre, o tio, a mídia, o jornalista, a Globo, a lei, o STF, a CPI da Covid, os vivos e os mortos, e talvez até os pais (ou talvez não!), todos os mitos e deuses vencidos e humilhados em público, no gesto cândido, simplesinho e bonachão do nosso caudilho.

Pois não importa o que digam “os hipócritas”! Não importa a ordem, a coesão social, a unidade nacional, a lei, os pais, os deuses, nada importa, nada é sagrado. Importa apenas a vontade do filho do homem. Seria esse o poder messiânico, aquele que, na contração do tempo, torna inoperantes as leis e estruturas, que as transcende e transforma? Não foi o que se deu com o jovem rabino Saulo, quando ser judeu ou romano não mais importa diante do Messias, e ele se torna Paulo, “o pequeno”? Não é essa uma das teses principais de Giorgio Agamben em O Tempo que Resta?

Não exatamente; se há o messiânico, há o seu simulacro. Há, sim, algo de aparentemente messiânico nessa misteriosa figura descrita pelo apóstolo Paulo em sua primeira epístola aos Tessalonicenses, “aquele se levanta contra tudo o que se chama deus ou é objeto de culto, a ponto de se sentar no santuário de Deus, apresentando-se como Deus” (1Ts 2,4). Esse “homem do pecado”, o “filho da perdição” se chama iníquo, anomos, o “Sem-Lei”. Esse não pode aceitar nenhuma lei e nenhum império; ele é a sua própria lei, a sua própria vontade. No entanto, como observa o filósofo italiano: “O messiânico não é a destruição, mas a desativação da lei, tornando-a inexecutável. A katargēsis messiânica não abole meramente; ela preserva e leva ao cumprimento”.

Não importa a ordem, a coesão social, a unidade nacional, a lei, os pais, os deuses, nada importa, nada é sagrado. Importa apenas a vontade do filho do homem

Muito bem; nesse caso, o que vimos pela tevê foi o simulacro do Messias. Mas, como bom marxiano, Agamben não falharia em confundir as coisas nalguma conflagração dialética. Comentando o segundo capítulo da mesma epístola, onde o apóstolo fala sobre a vinda do “iníquo” (anomos) e sobre aquele que o “retém” (katechōn) e impede sua manifestação, o filósofo sugere que o messiânico se caracterizaria por uma falta de lei, pela revelação da ilegitimidade de todos os poderes constituídos. E nesse momento o império se revelaria como poder absolutamente fora-da-lei. Assim, o tempo messiânico seria também o tempo do antimessiânico.

Há aí um erro crítico, pela incompreensão da força pela qual a ordem estabelecida é subvertida por Cristo, que é o amor; pois o amor não é a mera contradição da ordem, mas sua fonte e o único modo possível de sua existência. Se o amor de Cristo cria uma desordem, é porque a ordem estabelecida tornou-se, na verdade, uma desordem estabelecida. O messiânico não é uma “falta de lei”, mas a verdadeira lei, como Jesus ensinou no Sermão da Montanha, no evangelho de Mateus. Nada há de messiânico num tempo antimessiânico.

Ainda assim, salva-se em Agamben essa intuição: o anomos é um poder desordenador.

O anomos, esse “sem-lei”, é um pseudomessiânico, um anticristo (e o apóstolo João nos advertiu de que há muitos anticristos pelo mundo, de todas as formas e tamanhos). Não porque torne inoperantes as estruturas estabelecidas superando-as e transcendendo-as, e “tornando ineficazes” os poderes opressivos dessa era, como o fez Nosso Senhor Jesus Cristo, que venceu o poder de Roma por meio do amor, da obediência a Deus e da ressurreição, inaugurando dentro da história uma nova ordem dos séculos. Não, esse não é o método do iníquo! A obra do anomos é destruir a lei, arruiná-la, apodrecê-la. Não é a transcendência, mas a ruptura histórica, a desordem, a decrepitude, o abuso, o jeitinho, o moralismo imoral, a paradoxal cordialidade autoritária brasileira, que desde sempre foi o nosso paganismo. O Cristo faz transcender a lei; o anomos faz submergir. Anomia, anarquia e autoritarismo são imitações baratas do messiânico.

Que não seja invocado Dionísio aqui; ele não pode salvar Messias. A presente desordem brasileira não é a paixão, o desejo pulsional que vaza pelas frestas, que racha as formas fixas, que lubrifica e suaviza a existência e se contrapõe ao apolíneo, mas uma negatividade demoníaca, que despreza o outro e as coisas que nos são comuns, e que cospe em tudo o que é sagrado.

“Mas desde quando respeitamos ídolos?” – a interrogação inevitável! Certamente não respeitamos ídolos, se somos cristãos. Mas respeitamos a sacralidade. Mesmo o apóstolo Paulo, revoltado diante da idolatria de Atenas, honrou a piedade religiosa dos atenienses no Areópago. Não por acaso a iniquidade do iníquo não reside apenas em sua profanação do Santuário de Deus, mas em seu desprezo por toda e qualquer divindade, pelo seu rolo compressor que torna todas as coisas igualmente insignificantes. Meus amigos calvinistas, o iconoclasmo não é uma virtude per se; Satanás, que odeia esses seres feitos à imagem de Deus, foi o primeiro iconoclasta!

É ambidestra essa irresponsabilidade, esse cainismo que descuida do próximo e da fé do próximo e que, em sua ânsia por revolucionar, ignora a desgraça comum; revolucionários são revolucionários, seja à esquerda, seja à direita. Tampouco é esse erro apenas de um dos poderes. Também cospem em coisas sagradas os manipuladores do direito, que anulam julgados razoáveis e submergem a justiça nos procedimentos, nas “garantias” e no horizonte político. E assim o poder institucionaliza a desordem, e um abismo jurídico chama o abismo político, e uma iniquidade jurídica radicaliza uma iniquidade política.

O pseudomessiânico e seus falsos profetas precisam ser resistidos; suas mentiras, expostas; sua zombaria do respeito ao bom senso, à prudência e às instituições, contida; e sua desconsideração pelo luto de outros, reprovada

Os cainitas são um perigo para as nossas crianças, todos eles! Se queremos conduzi-las ao reino de Deus, não podemos tolerar a operação do erro, refestelados num sofá apocalíptico. O pseudomessiânico e seus falsos profetas precisam ser resistidos; suas mentiras, expostas; sua zombaria do respeito ao bom senso, à prudência e às instituições, contida; e sua desconsideração pelo luto de outros, reprovada.

“Quem recebe uma destas crianças em meu nome, recebe a mim.” (Mateus 18,5)

O presidente retirou as proteções dos brasileiros por meses a fio, durante a pandemia, apenas para nos agraciar com suas fotos. Mas crianças? Crianças são sagradas! E ontem ele demonstrou a todos a sua bênção, a bênção que ele reserva para os pequeninos hoje e para seu próximo mandato. Com sua luz eles aprenderão que nada é sagrado diante da vontade de um homem.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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