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“Lava Jato mostrou o que o PT verdadeiramente é”, diz Sergio Moro
O ex-juiz e pré-candidato à Presidência Sergio Moro (Podemos).| Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

A carta de Moro não é neutra. E isso é uma coisa boa.

Como já mencionei antes na Gazeta e em minhas mídias sociais, o campo evangélico tem sido tratado, por anos a fio, de uma forma intoleravelmente manipulativa, discriminatória e infantilizadora, tanto pelo mundo político quanto pela imprensa. Em geral os políticos negociam a portas fechadas com caciques denominacionais, se dirigem ao público com manipulações sentimentalistas, e escondem suas posições por trás de uma grossa cortina de ambiguidades. E, enquanto isso, as demandas da comunidade evangélica são solenemente ignoradas.

Considero um gesto de coragem e de respeito verdadeiro a decisão de publicar uma carta na qual as demandas dessa comunidade são abertamente reconhecidas e mencionadas. Não se trata, aqui, de uma lista de reivindicações de uma denominação ou de uma pequena cabeça-de-ponte partidária, mas de uma tentativa aberta de se comunicar com o cristão médio e com a liderança evangélica plebeia, sem fingir que a fé do crente não importa para construção nacional, e de realizar uma incorporação substancial dos anseios dos evangélicos em seu projeto de governo.

Concordando ou não com os evangélicos, é importante que o leitor tenha isso em mente. Eu realmente gostaria de ver outros candidatos tomando coragem para abandonar essa estratégia de invisibilização e dar respostas mais claras às interrogações do cristão evangélico. Poderíamos ter gratas surpresas.

Mas, sem mais delongas, vamos à carta.

Ética política

A lista de princípios da campanha de Moro para com os evangélicos começa (1.º) com uma afirmação da dignidade de pessoas de todas as crenças, e com o cultivo de um verdadeiro reconhecimento próximo apesar de divergências de crença. Temos, então, um explícito compromisso com o pluralismo cultural. É dentro desse compromisso geral que a relação com os evangélicos será desenvolvida: nenhum privilégio, nenhuma discriminação. Ótimo.

Eu realmente gostaria de ver outros candidatos tomando coragem para abandonar a estratégia de invisibilização e dar respostas mais claras às interrogações do cristão evangélico

Em seguida (2.º) temos o compromisso com o respeito às esferas de soberania, segundo o que prevê também a nossa legislação: nada de “voto de cajado”. Igreja é lugar de culto a Deus, não de propaganda político-partidária. Devo dizer aqui que essa foi uma bandeira de muitos militantes da esquerda evangélica (nem sempre muito coerentes) contra a profanação do culto evangélico por interesses partidários. Esse compromisso ético da campanha de Moro é um conforto para a alma.

O terceiro princípio começa seguindo na mesma toada: nada de troca de favores institucionais para financiar campanhas. Embora admita logo depois a busca de apoio individual de lideranças eclesiásticas e influenciadores, deixa claro que não buscará apoio institucional de igrejas, para respeitar a “autonomia da consciência”. Se entendo bem, o ponto parece ser que os membros das igrejas não podem ser involuntariamente contados como apoiadores, “de porteira fechada”. De novo, trata-se de um compromisso ético básico.

Crenças cristãs na arena pública

Em seguida a esses compromissos éticos fundamentais com a sociedade e com a política, temos o quarto princípio, entrando na agenda confessional, com a defesa sem ambiguidades da “não ampliação da legislação em relação ao aborto” e a “preservação da vida humana em todas as suas manifestações”, excluindo também a eutanásia. Aqui está: pró-vida, abertamente, sem concessões e sem ambiguidades.

As liberdades civis fundamentais serão valorizadas, mas “particularmente a liberdade de expressão” e a “liberdade religiosa e de culto de forma ampla” (5.º). No tocante à liberdade de expressão, é fato que vivemos um momento de contestação e de perplexidade em relação a esse direito. Por um lado, seu abuso na forma de discurso de ódio, teorias conspiratórias e desinformação em geral foi acelerado pelo advento das mídias sociais, e atingiram tal grau de insalubridade durante a pandemia que a Organização Mundial da Saúde reconheceu em 2020 a existência de uma infodemia global – a pandemia da informação. Por outro lado, uma vontade de controle de opiniões discordantes e a própria cultura do cancelamento deram mostras de um apagão na liberdade de expressão no Brasil, o que já foi assunto de editorial aqui na Gazeta.

O caso recente em torno do Flow podcast, levando à demissão de Monark e à abertura de inquérito contra ele e contra Kim Kataguiri pela PGR é ilustrativo do problema. A essa altura do campeonato, a ideia de que uma ideologia intrinsecamente genocida e racista contra judeus possa ter permissão para circular sem nenhuma coerção, e até mesmo que um partido nazista possa ser fundado, é um consumado absurdo, sendo merecida a demissão do influenciador e a reação moral contra tais ideias (e devo observar, aqui, que o argumento de que a mesma lógica não vale para o comunismo é, também, absurda, já que o ódio de classe e eliminação violenta da burguesia são também intrínsecos às formas ortodoxas de marxismo).

Mas, isso dito, é claro que a defesa pública do direito de uma ideologia ruim se expressar não pode ser também criminalizada, ou criaremos uma espécie de regressão infinita – será que, se alguém defender o direito de Kim Kataguiri de defender sua versão libertária (e, para mim, autocontraditória) de liberdade de expressão também está fazendo apologia da apologia da apologia do nazismo?

Mas, voltando ao escopo da carta, temos um problema de liberdade de expressão muito mais suave do que esse e, também, muito mais cinzento: o direito de cristãos de expressarem suas objeções religiosas, filosóficas e éticas à ideologia LGBTQIA+. Sabemos que esse é o ponto de pressão desde o julgamento da ADO 26, quando o STF decidiu equiparar o crime (ainda não tipificado na legislação criminal) de homotransfobia ao crime de racismo. No entanto, a corte decidiu excepcionar a liberdade religiosa, facultando às igrejas o direito de rejeitar esses valores e de pregar sua própria visão de sexualidade.

Temos um problema de liberdade de expressão muito mais suave e, também, muito mais cinzento: o direito de cristãos de expressarem suas objeções religiosas, filosóficas e éticas à ideologia LGBTQIA+

A decisão tem a consistência interna de um castelo de areia, naturalmente. Não há e não pode haver exceção na criminalização do racismo porque raça não envolve crenças particularizadas e valores disputáveis. É uma condição genérica e neutra, da qual todo ser humano participa. Com o sexo biológico, por exemplo, dá-se a mesma coisa.

Mas a cultura LGBTQIA+, a orientação sexual e a identidade trans são fenômenos particularizados e muito mais complexos, envolvendo crenças de todo tipo, inclusive crenças morais. Não são moralmente neutros; são disputáveis, exatamente com a religião. A exceção concedida à religião foi dada por uma admissão tácita de uma divergência valorativa (e não genética, fenotípica, étnica, regional, sexual, ou outro assunto moralmente neutro) e, assim, de uma equivalência. Nesse caso, a equiparação a racismo é absurda e qualquer pessoa deveria ter o direito de criticar e recusar os valores da cultura LGBTQIA+, com ou sem religião. O que, naturalmente, não pode interferir nos direitos sociais e políticos de críticos e criticados.

Essa discussão se estende a outros problemas, como o direito de cristãos de praticar o proselitismo religioso, inclusive entre indígenas. Escrevi uma série de artigos para a Gazeta especificamente sobre isso. Trata-se de uma questão delicada, que precisa equacionar a proteção de comunidades tradicionais, seu direito à informação, e o direito ao proselitismo religioso. Nesse campo, é verdade que os cristãos erraram muitas vezes, mas também é verdade que sua atividade evangelizadora ajudou a preservar muitos povos e línguas.

Liberdade de culto

Em seguida, sob o mesmo quinto princípio, se afirma que será defendida “a essencialidade dessa atividade para a vida das pessoas”. O ponto não é trivial; vimos durante a pandemia não poucas pessoas, incluindo magistrados e jornalistas, tratando a religião como um assunto de crença subjetiva, como se fosse uma bizarrice privada. Inclusive com a tese absurda de que a devoção religiosa doméstica e privada seria suficiente.

A profunda ignorância da natureza da religião entre autoridades e formadores de opinião ficou, assim, bastante evidente. Liberdade religiosa não é o mesmo que liberdade de consciência – uma liberdade muito importante, também. Não estamos protegendo a liberdade de culto se garantimos que o sujeito possa crer no que quiser, desde que, por exemplo, fique em silêncio a respeito disso. Liberdade de culto é a liberdade de viver sua fé coletivamente e publicamente.

Ademais, a liberdade de crença e liberdade de culto são liberdades associadas, mas que dizem respeito a bens humanos distintos e distintamente tutelados por nosso sistema jurídico. É bom ver esse fato sendo reconhecido pela campanha de Moro.

A vontade de profanar e de invadir é desde sempre uma tara de esquerdistas autoritários, dos quais não há falta no Brasil

E, falando em problemas concretos, vimos dias atrás um vereador do PT (surpresa!) coordenando a invasão de uma paróquia católica no momento de culto, para um protesto contra o racismo. Ainda que isso não seja comum, sabemos que a vontade de profanar e de invadir é desde sempre uma tara de esquerdistas autoritários, dos quais não há falta no Brasil. Qualquer candidato a qualquer cargo precisa ser claro sobre isso, se pretende cortejar o voto evangélico. O referido vereador merece perder o cargo, e candidatos ambíguos a respeito disso merecem perder o voto de qualquer pessoa devota, seja qual for a sua religião.

Presença civil com pluralismo social

O sexto princípio responde ao que penso ser uma das mais cruciais demandas do movimento evangélico: sua presença, para além das portas das igrejas, na sociedade civil. A religião organizada e as igrejas têm um imenso papel público, ajudando a reparar o tecido social, promovendo a integração entre as pessoas e elevando o capital social nacional. Estudiosos canadenses, por exemplo, demonstraram que ao redor de cada congregação religiosa se forma uma rede de cooperação social e econômica que tem um efeito concreto no aumento do PIB nacional. Eles chamaram o fenômeno de halo effect (“efeito auréola”). Já defendi entre amigos e num artigo da Gazeta a construção de um “Atlas da Presença Social da Religião no Brasil”, com a função de mostrar em números a contribuição das religiões brasileiras para o país.

O documento garante que “o papel constitucional colaborativo das Organizações Religiosas e de Terceiro Setor confessionais na assistência social” será prestigiado. Em primeiro lugar, cabe esclarecer algo sobre a origem da linguagem sobre o “papel constitucional colaborativo”. Sabe-se que a Constituição de 1988 admite a colaboração entre o Estado e as igrejas quando isso contribuir para o interesse público, e isso é uma qualificação da mais alta importância à tese dos laicistas, de uma absoluta separação entre Estado e igrejas. De modo muito mais honesto e claro do que constituições como a francesa ou a americana, a nossa Carta Magna admite que o bem comum pode justificar a colaboração. Não há um muro de separação absoluto. Os colegas no IBDR Jean Regina e Thiago Vieira, por sinal, escreveram um brilhante volume sobre o conceito de laicidade colaborativa (A Laicidade Colaborativa Brasileira) que deveria ser leitura obrigatória a qualquer um que se arvore a falar em Estado laico.

Mas o que se segue disso? Que o Estado deve facilitar o cumprimento do papel social das igrejas e organizações religiosas do terceiro setor, sem jamais discriminá-las em nome da “laicidade do Estado”, como vimos acontecer tantas vezes. Por que organizações humanistas seculares, socialistas, liberais ou LGBTQIA+ gozam de privilégios especiais, como se não fossem também confessionais e baseadas em um núcleo de crenças particulares?

Se organizações religiosas têm, demonstravelmente, um papel colaborativo relevante, o Estado deve facilitar seu trabalho, sem discriminação confessional, e talvez até estimulá-lo com nudges burocráticos e fiscais.

Outro ponto importante é o compromisso com a imunidade tributária – de novo, sabidamente um tema polêmico. Concordo que se uma atividade alegadamente religiosa puder ser caracterizada como intencionalmente e efetivamente lucrativa, de modo que os limites entre o que é uma igreja e o que é uma empresa privada sejam transgredidos, não há como defender sua imunidade tributária. No entanto, o mero fato de a instituição religiosa crescer e movimentar muitos recursos não prova isso. A questão reside nos fins da instituição: se seus fins são transcendentes, e suas contribuições advêm de doações de membros para a causa, tal atividade é intrinsecamente externa aos interesses temporais do Estado, e não lhe diz respeito.

Se organizações religiosas têm, demonstravelmente, um papel colaborativo relevante, o Estado deve facilitar seu trabalho, sem discriminação confessional, e talvez até estimulá-lo com nudges burocráticos e fiscais

O sétimo princípio aparece logo depois das garantias à presença social cristã, e de um modo muito bem colocado na minha opinião. Merece citação na íntegra:

“Por princípio democrático, preservaremos a pluralidade política e incentivaremos o combate à discriminação, ao preconceito e ao discurso de incentivo ao ódio e à violência, ainda que simbólica, seja em virtude da religião, raça, orientação sexual ou ideologia.”

É muito apropriado que, após defender o reconhecimento da presença social cristã na arena pública, se defenda também o compromisso com uma cultura politicamente pluralista, e um espírito antidiscriminatório. Enquanto buscam ampliar sua presença na sociedade civil e na assistência social, os evangélicos deverão, portanto, tomar precauções redobradas para não instaurar uma hegemonia cristã opressiva sobre outras crenças e valores, nem se esquecer do cuidado com grupos vulneráveis e protegidos. Muito bem: os cristãos podem recusar o caminho identitarista, mas nem por isso podem se sentir livres para se impor sobre os outros.

Justiça e misericórdia

Evangélicos tendem a ser mais conservadores e, por isso mesmo, atentos a temas de justiça e segurança pública; mas entre seus interesses históricos está também a preocupação com pessoas vulneráveis, alcançadas através de inúmeros projetos sociais. Não é segredo para ninguém que evangélicos lutam, muitas vezes sozinhos, há décadas, com a recuperação de presos, alcoólatras e de pessoas vítimas de drogadição. O oitavo princípio lida com os dois lados da moeda: é preciso combater o tráfico de drogas, mas também apoiar os esforços de recuperação dessas pessoas, particularmente facilitando o trabalho das comunidades terapêuticas.

O documento também observa que o uso medicinal deve ser salvaguardado – o que é uma obviedade. Talvez isso esteja aqui apenas para acalmar delírios de “ditadura moral evangélica”.

Mas vamos ao ponto-chave: aqui o oitavo princípio se aproxima um pouco do sexto, referente à laicidade colaborativa: é preciso que a sociedade brasileira e o Estado brasileiro deixem essa inútil tentativa de arrancar os olhos diante da contribuição religiosa na recuperação de usuários de drogas e criminosos. A mesma questão retorna no décimo princípio, em que uma postura ética de ressocialização de presos é assumida, e a colaboração com “entidades confessionais ou laicas nessa atividade” é garantida.

É preciso que a sociedade brasileira e o Estado brasileiro deixem essa inútil tentativa de arrancar os olhos diante da contribuição religiosa na recuperação de usuários de drogas e criminosos

Experiências de sucesso envolvendo princípios religiosos de qualquer tipo precisam ser reconhecidas e incorporadas, independentemente de suas implicações proselitistas. Alegar proselitismo para marginalizá-las apresentando, em seguida, uma alternativa laicista é hipocrisia.

Quanto ao nono princípio, Moro se torna bem pessoal mencionando seu tempo como ministro da Justiça e Segurança Pública, garantindo “metas objetivas e ambiciosas para redução de homicídios e feminicídios no país”. É claro que esse compromisso não é distintivamente “evangélico”; mas sabemos que o eleitor à direita tem uma compreensão da justiça que inclui o elemento retributivo de um modo que a esquerda se nega a afirmar. Penso que essa saliência moral foi tocada aqui. Os evangélicos em geral querem ver a polícia trabalhando.

Família e educação

Esses dois itens não poderiam faltar, evidentemente. No 11.º princípio temos um compromisso claro e límpido com “a autonomia da instituição familiar”. Mas, ao mesmo tempo, com as preferências afetivas e sexuais e os direitos de cada indivíduo. Muito bem, não estamos em uma sociedade tradicional e coletivista; não caberia em nosso mundo transformar a família num pequeno protetorado patriarcal. De modo que o texto me pareceu econômico e equilibrado: “não vamos fazer engenharia social com a família, nem vamos reverter as novas liberdades individuais”.

Creio que aqui há uma convergência feliz com as ideias de subsidiariedade e de esferas de soberania: a família tem uma autonomia própria. O governo que reconhece a uma instituição a sua autonomia própria e se autolimita conscientemente está mais longe de ser autoritário. Além disso, ele afirma que respeitará tanto a soberania dos indivíduos quanto da família, e reconhecer essas duas zonas distintas de soberania interna sugere uma compreensão mais nuançada da ordem social. A coisa não se resume em “Estado e indivíduos”, ou em “Estado, indivíduos e movimentos sociais”, segundo a sociologia lulopetista.

E, então, o texto declara: “o Estado deve evitar ao máximo invadir a esfera da liberdade privada, assim como deve preservar as crianças e adolescentes da sexualização precoce”. Não haverá a doutrinação de crianças e adolescentes para absorver os valores da revolução sexual e da cultura LGBTQIA+ – o que é, enfim, um crime contra a liberdade das famílias e uma opressão da elite cultural sobre as massas; mas haverá, por outro lado, nudges positivos para deixar as crianças serem crianças.

Admite-se, então, que no campo da educação sexual o Estado vem, há décadas, ignorando a autonomia da família e tomando decisões no lugar dos pais. Enfim, a honestidade.

No 12.º princípio, o ponto de pressão é o direito das instituições confessionais de atuar a partir de seus princípios e o direito dos pais de conduzir a educação moral e religiosa de seus filhos, “sem doutrinações”. Considerando o que lemos no princípio anterior, suponho que o pano de fundo aqui seja primariamente (mas não exclusivamente) a “ideologia de gênero”, que educadores e militantes laicistas juram de pés juntos não existir (pobrezinhos).

Deem-lhe o nome que quiserem, o fato é que tanto a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 quanto a Convenção Americana dos Direitos Humanos de 1969, das quais o Brasil é signatário, garantem aos pais a prioridade na educação moral e religiosa de seus filhos. De modo que é obrigação das escolas, tanto públicas quanto privadas, respeitar esse direito e dar aos pais o espaço para participarem do processo pedagógico, estabelecendo limites e áreas de cooperação.

Tanto a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 quanto a Convenção Americana dos Direitos Humanos de 1969, das quais o Brasil é signatário, garantem aos pais a prioridade na educação moral e religiosa de seus filhos

E quanto ao homeschooling? É um assunto que cai sob o tema dos direitos dos pais, e que é caro a alguns brasileiros. Francamente, no entanto, esse assunto dificilmente cairia bem como saliência de campanha política. A maior parte dos evangélicos, segundo a minha intuição, não está preocupada com isso. Enfim, Moro diz na carta que respeitará os direitos dos pais “nos termos das leis e da legislação em vigor no país”, e por enquanto o homeschooling não tem regulamentação.

A questão é complicada também para as escolas. Já mencionamos aqui a ADO 26; uma escola confessional que ensine a ética sexual cristã tradicional corre risco de ser acusada, no ato, de racismo? Esse é um problema que o Legislativo brasileiro vem adiando, mas que precisa de resposta urgente.

Ética social e pública

Chegamos, então, aos dois últimos princípios: de início o 13.º me pareceu excessivamente genérico, ajuntando compromisso com a democracia, ética política e boas políticas públicas. Mas o ponto de unificação aparece no fim do trecho: redução de desigualdades e erradicação da pobreza, “seguindo os princípios da compaixão inerentes à tradição cristã”.

Arrisco-me a sugerir que, aqui, Moro está claramente construindo um meio-termo com a tradição do cristianismo social; não está apelando especificamente à esquerda, mas aos instintos de fraternidade próprios do cristianismo e que, em razão da excessiva polarização ideológica, ficaram bastante submersos pela campanha e pelo estilo político da nova direita brasileira. O fato é que, na minha opinião, os cristãos que acompanharam essa nova direita em algum momento, como eu mesmo, tiveram de prender a respiração temporariamente. Só que isso não seria mesmo sustentável. Podemos debater sobre os limites do Estado, aqui, em termos abstratos, mas, considerando a Constituição de 1988 e a tradição cristã, me parece bobagem tratar todo o problema da compaixão cristã como uma coisa exclusiva da sociedade civil e ausente de considerações políticas.

Os instintos de fraternidade próprios do cristianismo, em razão da excessiva polarização ideológica, ficaram bastante submersos pela campanha e pelo estilo político da nova direita brasileira

Finalmente, no 14.º princípio, Moro se compromete com a boa governança, com transparência e combate à corrupção. Honestamente, eu esperava um tratamento mais robusto do tema do combate à corrupção, dado o histórico de Moro na Lava Jato. Pode ser que sua campanha não veja esse tema como uma saliência de grande importância para 2022; ou que se queira evitar o risco de lançar Moro num torvelinho monotemático. Em todo o caso, o tema está aí; governança com integridade moral.

Faltou alguma coisa?

A título de conclusão, teço alguns comentários sobre o que entrou e o que ficou de fora da carta.

Sobre o que entrou, tudo me pareceu bastante em ordem. Não consigo pensar em nenhuma objeção. Ética política com respeito à laicidade e às esferas de soberania, direito ao discurso religioso público, liberdade de culto e não apenas de consciência, presença na sociedade civil integrada com pluralismo social, justiça com misericórdia e com colaboração reconhecida da religião, autonomia da família, fim da doutrinação sexual do liberalismo expressivo, proteção à educação confessional, e uma ética social e pública cristã que unifique integridade moral do gestor com a compaixão cristã para com o vulnerável.

O que eu incluiria? De minha parte, penso que faltou a questão da conservação ambiental, como criação de Deus e da qual temos o dever de cuidar; uma ausência dolorosa, na minha opinião. Como já escrevi antes, essa é uma saliência positiva para os evangélicos brasileiros, segundo evidência científica recente. A exceção, claro, é a extrema-direita, mas esta não renunciará a Bolsonaro, com ou sem a menção dessa saliência por Moro. Penso que esse tema deveria ter sido citado na carta.

A carta não representa tudo o que os evangélicos são ou deveriam ser, mas apenas uma lista de reivindicações de classe

Outro assunto que faltou, e que deveria ter sido mencionado já que o tema da família foi abordado, é o da violência doméstica, que atinge particularmente mulheres e crianças. Não é um assunto distante da realidade do cristão comum e das congregações religiosas, e o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos não apenas registrou o aumento de casos, como tomou diversas providências para lidar com isso. Ao falar de autonomia da família, creio que esse assunto poderia ter sido contemplado direta e explicitamente, com a admissão de que as famílias brasileiras precisam, além de autonomia, de ajuda especializada e de políticas públicas.

Além desses, alguém poderia lamentar, aqui, a ausência de outros temas de elevada importância para a nação como, por exemplo, a falta de financiamento para a pesquisa científica no Brasil, um assunto de grande interesse para mim. Mas, em defesa da carta, eu diria que qualquer cristão responsável sabe que outros assuntos além de seus interesses de classe contam para o voto. O cientista, por exemplo, que coloca o financiamento em ciência como um dos seus principais critérios de voto não perde, com isso, a capacidade de considerar outros pontos da agenda de um candidato que tem alcance mais genérico, como saneamento básico e reforma política. A carta não representa tudo o que os evangélicos são ou deveriam ser, mas apenas uma lista de reivindicações de classe.

E a declaração final agrada a gregos e troianos: “Acreditamos que uma grande nação só possa ser construída com base na ética pública, privada e religiosa”. Amém.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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