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Marcha para Jesus
Marcha para Jesus de 2022, em Curitiba.| Foto: Arquivo/Comep

Na semana passada, um editorial da Gazeta do Povo levantou a questão sobre “o que os evangélicos querem”, alvejando diretamente o clientelismo petista. Subscrevo inteiramente a abordagem do editorial. É isso mesmo: incapaz de se comunicar com os evangélicos, o petismo trata o campo como uma espécie de “Geni” buarqueana. Ataca a visão de mundo evangélica impiedosamente, como se fora a incubadora do fascismo nacional, e usa lideranças evangélicas progressistas para achincalhar o movimento, mas, quando precisa ampliar o poder, negocia indecências com a liderança eclesiástica.

Mas não quero sugerir nem por um momento que negociações políticas sejam inerentemente promíscuas; pelo contrário, por essas mediações moderamos a tensão social, evitamos a guerra e construímos o bem comum. Nesse sentido, uma aproximação da bancada evangélica com o governo atual poderia se justificar em um esforço para viabilizar as pautas da liberdade religiosa e da liberdade de expressão. Afinal de contas, para que mais serviria uma “bancada evangélica”, a não ser para dar voz e peso político à pauta mínima da religião evangélica, que é a defesa de suas liberdades fundamentais?

Essa seria a minha pergunta ao deputado Silas Câmara, que está assumindo a liderança da bancada evangélica: o Estatuto da Liberdade Religiosa vai andar ou não? O apoio ao Estatuto deveria ser uma condição para qualquer cooperação significativa com o governo atual. Isso, sim, seria uma negociação respeitosa, que reconhece ao oponente o direito de existência.

No discurso ao Foro de São Paulo, Lula não falou uma bobagem involuntária, mas expressou com a máxima simplicidade a incompatibilidade entre a agenda petista e o campo evangélico

Voltando ao editorial da Gazeta, o seu ponto de que “medidas de caráter tributário dirigidas a igrejas (...) podem agradar a bancada evangélica e são certamente úteis para os pastores”, mas “pouco dizem ao fiel cristão que leva a sério sua fé e os valores que ela propõe” é inteiramente correto.

A questão crucial que o Brasil vive hoje, da legitimidade do imaginário cultural e moral do campo evangélico na construção nacional, tem recebido uma resposta silenciosa, mas inequívoca: um não, que transparece no desprezo e até na oposição aberta que a inteligência progressista oferece a esse campo.

Não é que o evangélico não tenha nenhuma visibilidade; quando interessa, figuras evangélicas emergem no discurso político do campo da esquerda e do jornalismo nacional. Mas como são caracterizadas, primariamente? Não como evangélicos, mas como alguma minoria ou grupo protegido importante que, por algum acidente histórico nacional, também é evangélico: o negro crente, a mulher negra pentecostal, o jovem evangélico de esquerda, a pastora de uma igreja inclusiva que denuncia a homotransfobia dos pastores.

A verdade é que substância da coisa, o seu tutano moral, que são as visões de espiritualidade, de moralidade e de comunidade propriamente evangélicas – e seus disseminadores principais, os pastores –, seguem sistematicamente descontadas em todas as conversações importantes. Isso quando não são demonizadas pela esquerda, como confessou um incauto presidente Lula em seu famigerado discurso de abertura no 26.º encontro do Foro de São Paulo: “Aqui, no Brasil, enfrentamos o discurso do costume, da família e do patriotismo. Ou seja, enfrentamos o discurso que a gente aprendeu a historicamente combater”, discurso que ele caracteriza explicitamente como “fascista”.

Não há muito o que debater aqui. Naquela “bendita” noite de quinta-feira, o presidente não falou uma bobagem involuntária, mas expressou com a máxima simplicidade o que a esquerda brasileira sempre promoveu historicamente. Aí está, escancarada, a incompatibilidade entre a agenda petista e o campo evangélico.

Quanto ao fato de os progressistas terem evangélicos professos em seus quadros, trata-se de um detalhe inconsequente e desprezível no cálculo final. Tanto é assim que, depois de usar esses progressistas no embate eleitoral de 2022, o governo Lula os descartou sumariamente. Levantei a questão nessa coluna, se o governo Lula “esqueceu” os evangélicos progressistas, e a resposta é que ele os ignorou de olhos bem abertos.

O progressismo no poder governa desautorizando e combatendo a compreensão de mundo evangélica, e seus militantes de terceiro escalão não se incomodam nem um pouco em classificar os educadores e formadores da comunidade evangélica de fascistas, sem mais

O colega Marcio Antonio Campos chamou a minha atenção há alguns dias para outro editorial, este do Estadão: “Lula, os evangélicos e o espírito republicano”. O editorial começa atacando as lideranças evangélicas que negociam com o governo a expansão das imunidades tributárias das igrejas, e acusando todos os que buscam essas imunidades de desejar “negócios altamente lucrativos”. Isso é certamente verdade em muitos casos, mas a generalização reverberada pelo Estadão é gratuita e sintomática do preconceito antieclesiástico no jornalismo nacional. Mas vamos à parte mais interessante do editorial:

“Atender aos interesses reais das pessoas de fé não é, portanto, beneficiar financeiramente lideranças religiosas. É governar responsavelmente. Em vez de se tornar refém dessas lideranças que distribuem lucros e querem transformar o CNPJ de suas entidades num passe de mágica para o não pagamento de tributos, Lula e o PT têm a obrigação de respeitar a população evangélica, a começar por não desautorizar sua compreensão de mundo, majoritariamente conservadora, que valoriza a família tradicional. O pluralismo democrático exige respeito efetivo aos valores de cada cidadão.”

Com as ressalvas já mencionadas, o editorial do Estadão vai à raiz do problema: não apenas o PT, mas o progressismo nacional não respeita efetivamente os valores do campo evangélico. Não importa se abre “cotas” para evangélicos professos; não somos idiotas. O progressismo no poder governa desautorizando e combatendo a compreensão de mundo evangélica, e seus militantes de terceiro escalão não se incomodam nem um pouco em classificar os educadores e formadores da comunidade evangélica de fascistas, sem mais.

Eu mencionei o PT e o progressismo, mas é claro que o problema é bem mais amplo. Em outubro do ano passado escrevi um artigo sobre o espírito da esquerda democrática brasileira e sua visão da família, discutindo a estapafúrdia declaração de Priscila Cruz, diretora do Todos pela Educação, relacionando o homeschooling com crime e abuso infantil num evento de apoio a Lula. Mas o ponto crítico da análise foi a relação entre o Todos pela Educação e o coletivo Derrubando Muros, que apoiava a candidatura Lula. A composição do coletivo é impressionante, de acordo com o site “O Vermelho”:

“A lista de empresários do grupo conta com nomes como Horácio Lafer Piva (da Klabin), José Olympio Pereira (do banco Credit Suisse), Antonio Moreira Salles (filho do presidente do Conselho de Administração do Itaú, Pedro Moreira Salles), Marcelo Britto, da Associação Brasileira do Agronegócio, e os economistas Pérsio Arida, Armínio Fraga, André Lara Rezende e Elena Landau. O grupo reúne também especialistas como Ana Toni, diretora-executiva do Instituto Clima e Sociedade; Fersen Lambranho, empreendedor; Joana Monteiro, doutora em Economia, coordenadora do Centro de Ciência Aplicada à Segurança da FGV; Luiz Barroso, engenheiro especializado em Energia, diretor-presidente da PSR Consultoria; Pedro Hallal, epidemiologista e ex-reitor da Universidade Federal de Pelotas; A iniciativa atua em várias frentes. Na educação, por exemplo, os representantes são o ex-ministro Cristovam Buarque e Priscila Cruz, do Todos pela Educação; entre outros.”

Eu não teria condições de acusar cada um desses nomes, individualmente, de planejar um Brasil descontando o campo evangélico; mas o coletivo, sim, tem a minha acusação. E não só ele; esses líderes econômicos e culturais, juntamente com boa parte da academia, do estamento burocrático nacional e da grande mídia, compõem a elite cosmopolita nacional, que negocia com o PT o futuro do país descontando a visão de mundo dos cidadãos evangélicos e, nesse assunto, também dos católicos praticantes. Essa elite não entendeu que um processo revolucionário foi iniciado em 2013, como argumentou o sociólogo Eduardo Matos de Alencar, e que a supressão desse movimento, do qual os evangélicos fazem parte, trará consequências.

Não acredito que os evangélicos, que se mobilizaram a partir de 2013 para reivindicar o seu lugar na república brasileira, vão sossegar facilmente. Eles não voltarão para a caixa daqui para a frente

É por isso que as negociações políticas tradicionais e clientelistas do PT serão insuficientes para produzir “união e reconstrução” nacional. O PT precisaria abrir a guarda e admitir uma acomodação dos evangélicos no projeto nacional, e não como “indivíduos”, mas como classe ou campo religioso, social e comportamental, incluindo suas culturas e instituições.

Essa acomodação pluralista exigiria, ainda, uma pacificação da luta entre os defensores do paradigma de gênero e ética sexual liberal-expressiva, por um lado, e os cristãos, por outro lado, com sua defesa dos “costumes” e da “família”. Onde, por Deus, o PT fez uma discussão séria desse assunto, que não seja um falso diálogo com o propósito de civilizar o evangélico médio e demonizar os conservadores?

Posso ter uma surpresa no futuro, mas não acredito que os evangélicos, que se mobilizaram a partir de 2013 para reivindicar o seu lugar na república brasileira, vão sossegar facilmente. Eles não voltarão para a caixa daqui para a frente. Sem um pluralismo democrático inédito não haverá reconstrução, e muito menos união.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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