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Governo Britânico recebe relatório questionando transição de gênero em crianças e jovens
| Foto: Unsplash/Ian Taylor

Compreensivelmente, as telas e as mentes foram inundadas nos últimos dias com o escândalo dos X-files e com as revelações do comitê do Congresso dos EUA sobre a aparente violação de liberdades fundamentais e da constituição pelo Ministro Alexandre de Morais.

O ruído dessa batalha ocultou, no entanto, uma escaramuça muito importante para a causa conservadora: a publicação do Relatório Cass, no dia 10 de Abril. Cass Review é o nome curto para a “Revisão Independente dos Serviços de Identidade de Gênero para Crianças e Pessoas Jovens”, solicitado pelo sistema de saúde britânico (NHS) em 2020.

Hilary Cass, que já foi presidente do Royal College of Paediatrics and Child Health, foi encarregada da tarefa, e entregou o serviço na semana passada.

O objetivo do relatório era o melhoramento dos serviços sobre identidade de gênero para crianças e adolescentes que questionam a sua identidade ou que experimentam disforia de gênero

Isso tendo como ponto de partida uma revisão sistemática e detalhada de toda pesquisa científica ao redor do tema, do sistema de atendimento e dos resultados objetivos dos tratamentos disponíveis.

Mas desde o início as suspeitas eram largas. Uma polêmica já se desenvolvia há tempos sobre o estranho fato de que crianças do sexo feminino apresentavam um aumento alarmante de indicações de disforia de gênero em relação às crianças do sexo masculino.

Em março de 2019 a médica Lisa Littman publicou um artigo na PLOS ONE que causou furor generalizado, ao propor o contágio social como um subtipo entre as causas da disforia de gênero, introduzindo o conceito de rapid onset of gender dysphoria (“disforia de gênero súbita ou de rápido início”), ou ROGD. Entre as possíveis causas discutidas por acadêmicos, Littman cita o possível papel das mídias sociais, segundo reportado pelos pais de adolescentes.

Littman encontrou virulenta oposição, mas não apenas pelas falhas encontradas em seu estudo; a demonstração de sua hipótese evidentemente colocaria a militância em defesa/promoção da infância trans em maus lençois. O conceito de ROGD introduzido por ela acabou se espalhando nas mídias conservadoras e foi usado para alterar legislações e jurisprudências sobre “cuidado afirmativo de gênero” para crianças e adolescentes em vários estados norte americanos. O conceito foi diretamente atacado pelas autoridades da Associação Profissional Mundial pela Saúde Transgênero (WPATH).

O debate segue intenso, com os defensores do tratamento afirmativo de gênero reivindicando com todas as forças o manto da autoridade científica.

Em março do ano passado, Michael Bailey, psicólogo da Northwestern University e Suzanna Diaz – um pseudônimo da mãe de uma criança com disforia de gênero – publicaram um artigo na revista Archives of Sexual Behaviour reivindicando mais de 1600 possíveis casos de disforia de gênero causados “síndrome socialmente contagiosa”, empregando a hipótese de Littman. Mas não vingou: o artigo foi retirado em junho de 2023, sob a alegação de que os autores não teriam obtido o consentimento dos indivíduos pesquisados para a sua publicação. E logo depois, em agosto do mesmo ano, a prestigiosa Scientific American publicou um artigo de Timmy Broderick afirmando que a hipótese ROGD não teria fundamento científico.

A despeito das objeções – a meu ver, não fatais – apresentadas pelo artigo da Scientific American, muita gente pensa que a história ainda não acabou. Recentemente, ninguém menos que Jonathan Haidt, o renomado psicólogo social estadunidense, criador da Teoria dos Fundamentos Morais e autor de A Mente Moralista (Alta Cultura, 2020), resolveu apostar na hipótese RODG. Haidt atraiu ampla atenção recentemente por seus estudos sobre o impacto negativo das mídias sociais na saúde mental de crianças e adolescentes, e por um artigo em particular, no qual mostrou que “a saúde mental das garotas liberais afundou primeiro e mais rapidamente”. A saúde mental de jovens de esquerda seria pior do que a dos jovens conservadores, e as meninas progressistas teriam a pior saúde mental entre todos.

O caso é que esses achados apresentam ressonância com a hipótese de que uma parcela dos casos de disforia de gênero, que também cresce mais entre meninas, poderia ser resultante de uma síndrome de contágio social.

Haidt acabou de lançar uma obra de alto impacto, “A Geração Ansiosa” (“The Anxiety Generation”), na qual sustenta que a disforia não apenas aumenta entre meninas, mas aparece em bolhas ou clusters – um dos padrões reconhecidos de contágio social complexo. Haidt admitiu isso em uma entrevista para a PBS, gerando preocupação entre os defensores de tratamentos afirmativos.

Aqui entra a importância do Relatório Cass. A bem da verdade, o relatório não propõe nenhuma hipótese explanatória para o problema do aumento nas indicações de disforia de gênero entre crianças e adolescentes. Mas – para o desespero de organizações como a WPATH – ele efetivamente problematiza esse aumento.

Em primeiro lugar, o relatório observa que o crescimento da disforia de gênero entre os jovens teria origem em uma mistura de causas biológicas e psicossociais, incluindo o efeito das mídias sociais, abuso e pornografia online.

E deixa claro que o aumento da aceitação pública das identidades trans é insuficiente para explicar o fenômeno.

O relatório também não encontrou evidência de que o uso de bloqueadores hormonais, para atrasar a puberdade, teriam efeito positivo ou negativo sobre a saúde mental, embora tenha demonstrado comprometimento da saúde óssea dos pacientes. O argumento de que o atraso da puberdade daria tempo aos jovens “para pensar” desmoronou, uma vez que quase todos os usuários de bloqueadores acabam optando por terapia hormonal de transição de gênero. Finalmente, o atraso no desenvolvimento peniano afeta negativamente a saúde sexual de futuras mulheres trans.

Por fim, o relatório observa que não há acompanhamento dos indivíduos que optaram por detransicionar (retornando ao gênero de origem), de modo que não se sabe de fato o grau de sucesso das abordagens médicas. Sua recomendação é que a trilha médica é inapropriada para a maioria dos jovens, restringindo-se a casos de grande segurança e que mesmo assim devem ser acompanhados de investigações mais amplas de saúde mental e psicossocial.

Mas isso não é tudo. O relatório encontrou evidência de que a altíssima temperatura ideológica do assunto está afastando os cientistas do campo, por medo de exposição e perseguição política e profissional. Profissionais que não adotam a ideia de tratamento afirmativo de gênero, preferindo testar outras possibilidades, vem sendo acusados de promover “terapias de conversão”, o que poderia destruir suas carreiras.

Ou seja: o relatório confirma que o viés ideológico pelos tratamentos afirmativos realmente produz um impacto negativo na pesquisa científica e na qualidade do tratamento de saúde, afastando investigações de qualidade, desprezando a contra-evidência, e submetendo pacientes com quadros psicológicos complexos à panaceia simplista da transição de gênero, com graves impactos posteriores na saúde física e mental de alguns deles. No mínimo, esse fato reforça os reclames de Lisa Littman contra seus detratores.

No seu “Interim Report”, publicado em 2022, o Relatório Cass já havia apontado sérios problemas na famosa Clínica Tavistock, que fazia transições de gênero em crianças e adolescentes, com uma abordagem afirmativa universal. A clínica foi processada por mais de mil ex-pacientes que decidiram pela detransição e se sentiram lesados por sua política, e acabou fechada no mês passado; e menos de um mês depois, o Relatório Cass recomendou uma severa revisão dos tratamentos afirmativos para crianças e adolescentes.

O primeiro-ministro britânico, Rishi Sunak, deu seu apoio ao Relatório, assim como o departamento de saúde britânico (NHS), que encomendou o estudo. Tanto os representantes do partido Trabalhista quanto do partido Conservador apoiaram o relatório. Ao mesmo tempo, as grandes organizações de saúde trans reclamaram duramente, de certa forma confessando o seu viés politizado. Em suma: depois do fechamento da Clínica Tavistock, o Relatório Cass foi o maior revés sofrido pelo movimento trans até o momento, e por uma simples razão: ele mostrou a falta de rigor científico e técnico na promoção da infância e da adolescência trans.

E quanto ao Brasil? Repete-se aqui já ocorreu em diversos países ocidentais: as políticas afirmativas estão se estabelecendo antes do conhecimento científico, o que praticamente transforma os pacientes em cobaias. Mas com um agravante: aqui nós já sabemos o que está dando errado. Mas pelo andar da carruagem, um Relatório Cass tupiniquim correria risco de ser proibido pelo STF.

Conteúdo editado por:Aline Menezes
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