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Lula em um encontro com evangélicos no Rio de Janeiro, durante a campanha de 2022.
Lula em um encontro com evangélicos no Rio de Janeiro, durante a campanha de 2022.| Foto: André Coelho/EFE

Rodou a internet uma pequena sequência de comentários de Andréia Sadi e Octavio Guedes no programa Estúdio i, veiculado na Globo News em 18 de março, comentando a primeira reunião ministerial do ano e as falas do presidente Lula. No bate-papo, a certa altura, o grupo entra na discussão sobre a alegada defesa do fim do Estado laico por Michelle Bolsonaro, sobre a qual Octavio Guedes pontifica:

“Que pra mim vai ser o maior problema da democracia nos próximos anos...  não vai ser direita e esquerda, não vai ser estatização, vai ser a luta de um segmento que acredita que a igreja tem de tomar o Estado, que foi uma distração do satanás dizer que política e religião não se misturam, isso é um fato que as forças democráticas do país vão ter de debater e enfrentar sem medo dos líderes evangélicos.”

Eu mal pude acreditar. A atitude proposta pelo jornalista é de enfrentamento total: uma disputa entre “as forças democráticas deste país” e os líderes evangélicos, a essa altura caracterizados como inimigos da democracia.

“Comer, beber, dormir e pagar contas”. Não se trata só disso; o evangélico quer plena representação política e pública

No mesmo programa, a jornalista e apresentadora Andréia Sadi cobra do presidente maior atenção à vida real do brasileiro, e propõe algum diálogo com os evangélicos:

“É você olhar, sentar e conversar. Por exemplo, quando a gente fala de interlocução com evangélicos, não é se converter, a religião é livre, cada um faz o que quiser... Mas é você ouvir o evangélico, é você ouvir o segmento e tentar achar uma pauta convergente. Porque o evangélico, antes de tudo, por óbvio, come, bebe, dorme e precisa pagar as contas...”

“Pautas convergentes”: faz muito sentido. Cobeligerâncias, traçar círculos de cooperação; o cientista político Robert Putnam argumenta que a nossa “tartaruga interior” se ressente de lidar com a diferença, e que precisamos buscar o sentido mais amplo de “nós” de forma muito intencional.

Mas o final soa mal, não é? “comer, beber, dormir e pagar contas”. Não se trata só disso; o evangélico quer plena representação política e pública. Mas na sequência a conversa piora, com outra pérola dele, sim, o genial Octavio Guedes:

“Como é que o Paes ganhou com os evangélicos? Dizendo o seguinte: o ônibus está ruim, o posto de saúde está ruim, é... a escola está ruim, o asfalto tá cheio de buracos, a luz não está acendendo, Crivella um desastre, vamos voltar a cuidar da cidade, aí vale o quê? Vale mais o voto do morador do que o voto da fé. Desculpa, tô te cortando...”

Ao que a apresentadora respondeu: “não, você não está me cortando, está complementando, é exatamente isso, você nunca vai encontrar uma pauta convergente com alguém que não acredita numa pauta progressista”. E os outros painelistas assentiam com tudo.

Como evangélico, sinto-me consternado com essa conversa inteira; é degradante. Trata-se de conhecida postura laicista e antidemocrática, que nega à pessoa de fé a condição de sujeito político. O evangélico quer, como mencionamos em outra coluna recente, que os pilares sociopolíticos da religião – a família e a liberdade religiosa – sejam maximamente respeitados e protegidos, e que o governo se abstenha de promover qualquer projeto espiritual alternativo, incluindo religiões seculares como o identitarismo.

Se é verdade que muitos deles têm passado por um momento de radicalização? Sem dúvida. Mas isso resulta em grande medida do atual regime de poder, no qual a elite cultural nacional exclui sistematicamente as massas religiosas de qualquer participação significativa, como temos insistido por aqui.

Na nova guerra de classes, o PT seria um círculo de militância religiosa paracristã que promove, com fervor religioso, uma fé e uma esperança no progresso brasileiro através do Estado

Na semana passada examinamos nesta coluna a entrevista de Gleisi Hoffmann, deputada federal e presidente do PT, ao programa DR com Demori. No artigo eu chamei a atenção para a estratégia defendida por Gleisi para o enfrentamento do antipetismo evangélico. A posição de Gleisi, que não é consensual dentro do partido, mas domina no momento, é a de que o governo e a esquerda devem evitar a todo custo entrar numa discussão de mérito sobre as reivindicações evangélicas: “Não dá para tratar os evangélicos como uma categoria religiosa; tem que tratar como uma categoria social”.

Isso seria, como argumentei, nada menos que o apagamento político da fé e da própria comunidade evangélica. Trata-se de uma postura hipócrita, de uma laicidade de fachada, uma vez que, como se deu com boa parte da esquerda boomer e da própria Gleisi, o PT nasceu e foi aleitado pelos seios da Teologia da Libertação. O progressismo católico foi, sem dúvida, superado por um espírito laicista e pós-cristão, especialmente com a emergência das gerações X e millennial e seu identitarismo, e entrou em recessão; ainda assim, o substrato religioso permaneceu no partido com um páthos messiânico e traços de ética cristã.

Daí meu palpite de que, na nova guerra de classes, o PT seria um círculo de militância religiosa paracristã que promove, com fervor religioso, uma fé e uma esperança no progresso brasileiro através do Estado. Paradoxalmente, no entanto, essa religiosidade se oculta sob um discurso laicista, que precisa remover o excesso de religião da praça pública. A farsa cola porque, de fato, as raízes teológicas do PT estão muito profundamente enraizadas. Sua religiosidade é implícita.

O que ocorre agora é que o paracristianismo petista tem um competidor explicitamente religioso: o campo evangélico. E a estratégia de resposta atualmente sobre a mesa é laicizar o campo político, negar a legitimidade da influência religiosa nesse campo e, se possível, apagar do voto o elemento de fé.

Isso não significa que a esquerda tenha se alinhado de forma consistente com a solução hoffmanniana. Como reportei aqui, desde o ano passado a esquerda cristã se queixa veementemente de abandono pelo governo, advertindo a cúpula petista de que ignorar os evangélicos sairia caro. O problema é que a capacidade dessa esquerda cristã de engajar o povo evangélico é perto de nula. Sob um ponto de vista estratégico, promover ícones evangélicos de esquerda seria um suicídio político.

Mas nem o presidente parece totalmente consistente com a estratégia. Na referida reunião ministerial da última segunda-feira, Lula, explicando o tipo de democracia que almeja, defendeu “um país em que a religião não seja instrumentalizada como instrumento político de um partido ou de um governo; que a fé seja exercitada na mais plena liberdade das pessoas que queiram exercê-la... a gente não pode compreender a religião sendo manipulada da forma vil e baixa da forma com tá sendo neste país”. Implícito na afirmação está o desgosto com a influência principalmente evangélica na política nacional, que engrossa a resistência conservadora. Nesse sentido, Lula e Gleisi estão alinhados.

Entretanto, na mesma reunião Lula disse, referindo-se a Jorge Messias, advogado-geral da União, que o “Deus do Malafaia não é o mesmo que o nosso”. Malafaia retrucou, bem ao seu estilo, que o deus do presidente seria o pai-da-mentira. Contorno o mérito da discussão para destacar o detalhe embaraçoso: em mais um de seus honestíssimos e indispensáveis improvisos, Lula deixa escapar a verdade secreta do PT: no seu peito mora uma teologia política. O caso é que a teologia implícita do PT tem hoje poucos pontos de contato com a religiosidade evangélica.

A nossa elite cultural segue em guerra contra o proletariado nacional e contra os seus valores religiosos, e não pretende negociar nem um centímetro do país

Tudo isso torna ainda mais grave a conversa dos jornalistas da Globo News. A esquerda nacional vende uma farsa, de que seu projeto em nada interfere na religião e que, pelo contrário, o voto de fé é que resulta da manipulação política. Transmite-se a impressão de que os religiosos é que estão se metendo onde não devem, ao promover suas pautas conservadoras. Caberia ao jornalismo tirar as máscaras, e não reproduzir a estratégia do lulopetismo e de Gleisi Hoffmann; mas ali estão eles, confabulando em público sobre como dobrar os evangélicos, como manipulá-los sem ter de levar a sério nenhuma de suas preocupações, e como derrotar a liderança evangélica.

Esse tipo de discurso sugere que há, mesmo, um consórcio das elites contra as massas. A nossa elite cultural segue em guerra contra o proletariado nacional e contra os seus valores religiosos, e não pretende negociar nem um centímetro do país. E o novo inimigo público, o inimigo da democracia, já tem um retrato falado: é o líder evangélico.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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