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Claudine Gay, reitora da Universidade Harvard, em audiência no Congresso dos Estados Unidos em dezembro de 2023.
Claudine Gay, reitora da Universidade Harvard, e outras duas reitoras evitaram condenar explicitamente a defesa do extermínio de judeus no ambiente universitário, em audiência no Congresso dos Estados Unidos.| Foto: Will Oliver/EFE/EPA

“Essa é uma situação de alerta vermelho para a totalidade da educação superior.” Esses foram os termos empregados em uma thread do X pelo famoso psicólogo social Jonathan Haidt para descrever a convulsão provocada pelo testemunho das reitoras de Harvard, Penn e MIT em uma audiência do Congresso dos Estados Unidos, na última terça feira.

A deputada Elise Stephanik fez às três uma pergunta simples e direta: segundo o código de conduta das respectivas universidades, “pedir o genocídio de judeus constitui bullying ou assédio? Sim ou não?” As três – Sally Kornbluth (MIT), Liz Magill (Penn) e Claudine Gay (Harvard) – responderam de forma evasiva, indicando que só agiriam contra alunos em caso de violência efetiva. Magill, pressionada pela deputada, repetia: “é uma decisão que depende do contexto”, no que foi seguida de perto por Claudine Gay.

Pura conversa fiada, evidentemente. Em qual “contexto” pedir o genocídio de judeus seria permissível? Ademais, o assédio foi dirigido a estudantes judeus conhecidos, simultaneamente com uma guerra existencial de Israel contra o terrorismo genocida do Hamas. As evasivas sobre “contexto”, embora tecnicamente sustentáveis, foram o mais farisaico legalismo.

Em qual “contexto” pedir o genocídio de judeus seria permissível?

O episódio lançou ondas de impacto pelo mundo político, acadêmico e jornalístico dos EUA. Os republicanos arrancaram os cabelos, e mesmo senadores democratas lamentaram a postura vergonhosa das gestoras universitárias. Pesos-pesados como Robert George, Steven Pinker, Jonathan Haidt, Nicholas Christakis e Niall Ferguson apontaram a absurdidade do posicionamento em suas mídias sociais, e artigos foram publicadas em The Atlantic, New York Times, Washington Post e Financial Times. Quem deu notícia por aqui foi Alexandre Borges, para O Antagonista. Em suma, uma confusão dos diabos.

Contradições

Resumindo o imbróglio: as instituições alegam defender a liberdade de expressão e invocam esse compromisso para autorizar os discursos de ódio antissemita que contaminaram as universidades dos EUA nas últimas semanas, e se recusam a enquadrar seu alunado militante. Mas sua prática há quase uma década, no entanto, tem sido a de punir duramente professores e alunos por “microagressões” e por qualquer expressão alegadamente ofensiva a grupos protegidos, como imigrantes, negros, mulheres e a comunidade LGBT. Nesses casos, as instituições permitem demissões e cancelamento de eventos, e toleram até atos de vandalismo.

Exatamente dois dias antes da audiência no Congresso dos EUA, em 3 de dezembro, Bill Ackman, gestor de fundos hedge bilionários e ex-aluno de Harvard, divulgou em sua conta no X (com quase 1 milhão de seguidores) uma carta encaminhada a Claudine Gay, presidente de Harvard, quase um mês antes, em 4 de novembro. Na carta, nunca respondida por Gay, ele aponta a contradição: em nome da liberdade de expressão, Harvard protege o discurso antissemita e pro-Hamas, e, no entanto, a liberdade de expressão na distinta universidade vinha sendo sistematicamente negada aos desafetos do identitarismo. Ackman cita o resultado do ranking nacional da Fundação para os Direitos Individuais e de Expressão (Fire, no acrônimo em inglês), que colocou Harvard no vergonhoso último lugar, com a nota zero em uma escala de 100 pontos. Como é possível que a melhor universidade do mundo seja a pior em liberdade de expressão? Mais impossível ainda seria, nesse estado de coisas, acreditar no argumento da presidente de Harvard de que foi tudo “pela liberdade de expressão”. “Hipocrisia nível Harvard”, alguém diria.

É claro que Ackman não deixaria de se manifestar depois da audiência, e sua reação foi proporcional: “elas deveriam todas se demitir em desgraça”, segundo reportou o New York Times, com reverberação de vários intelectuais.

Liberdade de expressão

Sua referência à Fire merece atenção também. A fundação se manifestou pelo X argumentando que as universidades deveriam ser consistentes, e que se tornaram repreensíveis pelo “double-standard”: suprimir sistematicamente a liberdade de expressão através de códigos de conduta e relaxar sua aplicação no caso em que a pressão ideológica institucional impõe uma espécie de exceção, que seria o caso dos estudantes antissemitas.

Diante do backlash, a presidente da Penn, Liz Magill, veio a público se desculpar, motivando outro comentário da Fire. Na opinião da fundação, a emenda ficou pior do que o soneto. Em vez de admitir a contradição e tomar medidas para reverter a supressão da liberdade de expressão no câmpus, sua postura foi de prometer uma revisão das políticas institucionais, para combater o discurso antissemita. Segundo a Fire, isso resultará no banimento de toda a discussão aberta sobre Israel e Palestina.

As instituições invocam a liberdade de expressão para autorizar discursos de ódio antissemita, mas punem duramente professores e alunos por “microagressões” e por qualquer expressão alegadamente ofensiva a grupos protegidos

Outro crítico da resposta de Liz Magill foi ninguém menos que Steven Pinker, que propôs outro caminho. Sua síntese merece reprodução aqui: 1. Uma política de liberdade de expressão clara e coerente; 2. Neutralidade institucional: universidades são fóruns, não protagonistas; 3. Proibição do uso da força: chega de vetos de intrometidos, ocupação de edifícios, invasões de salas de aula, intimidações, bloqueios e agressões; 4. Desempoderar burocratas de DEI (“diversidade, igualdade e inclusão”), que não prestam contas a ninguém, e que transformaram os câmpus em piadas; e 5. Diversidade de pontos de vista: desencorajar monoculturas intelectuais e políticas (incluindo extrema-esquerda/PoMo/“interseccional”).

Vale mencionar ainda a reação de Jonathan Haidt, que anunciou o “alerta vermelho”. Ele apontou as mesmas contradições e recomendou o trabalho da Fire e de seu fundador, Greg Lukianoff. Os dois escreveram juntos o essencial The Coddling of the American Mind, no qual descreveram todo o processo de degradação da vida intelectual e da liberdade de expressão nas universidades dos EUA, a partir de um conjunto de práticas pedagógicas doentes que se tornaram endêmicas no país. Mas a barragem estoura mesmo em 2015, quando as universidades aceitam a ideia de punir “microagressões” e começam a inflacionar seus códigos de conduta com o policiamento do discurso acadêmico.

O alerta vermelho

Deu no que deu. Reagindo positivamente aos comentários de Steven Pinker, Haidt mostrou resultados de uma pesquisa do instituto Gallup, com dados de junho deste ano, indicando o rápido afundamento da confiança pública na educação superior. A porcentagem de adultos que disseram confiar “muito” ou “bastante” nas instituições universitárias caiu, entre 2015 e 2023, entre todos os grupos: 37 pontos porcentuais entre os eleitores republicanos (de 56% para 19%), 16 pontos entre os eleitores independentes (de 48% para 32%) e nove pontos entre os eleitores democratas (de 68% para 59%).

Haidt observou que esses dados são anteriores aos ataques terroristas de outubro, e anteriores à fala desastrosa das reitoras. O comportamento errático da academia no campo da liberdade de expressão estaria levando as universidades a uma bancarrota moral. E a origem de tudo isso, segundo Haidt, seria – adivinhem! – o identitarismo, destruindo a cultura acadêmica.

Em resposta, Haidt relembra um artigo e uma palestra ministrada por ele anos antes, em 2016, no qual ele argumentou que “Universidades devem escolher um telos: verdade ou justiça social”, destacando que a monocultura ideológica nas universidades destrói a possibilidade de “desconfirmação institucionalizada” das ideias que pretendemos defender, tornando difícil ou impossível a checagem dos vieses ideológicos dos acadêmicos. Se a universidade tem como objetivo a justiça social, a ideologia terá prioridade sobre a verdade, tribalizando toda a sua atividade. Pelo contrário, o propósito da universidade deveria ser a verdade.

Há algo mais a dizer aqui, no entanto; a despeito de suas observações válidas, creio que a Fire, Steve Pinker e Jon Haidt não atingiram a profundidade moral da questão. Simplesmente não há sentido em preservar qualquer apologia a genocídios dentro do campo da liberdade de expressão. Quanto a isso, não vejo apenas um problema de duplo padrão na aplicação dessa liberdade, mas de uma desproporção entre a apologia à violência e a mera crítica moral a grupos protegidos, reprimida por universidades da Ive League como o equivalente de “violência”. Essa desproporção foi apontada por conservadores como Patrick Deneen: uma defesa do genocídio não pode, honestamente, ser comparada com a recusa de usar os pronomes exigidos por supremacistas identitários.

Se a universidade tem como objetivo a justiça social, a ideologia terá prioridade sobre a verdade, tribalizando toda a sua atividade. Pelo contrário, o propósito da universidade deveria ser a verdade

A situação toda nos faz pensar, evidentemente, em nossa universidade pública. A julgar pelo desinteresse na questão da liberdade de expressão acadêmica – em sua medição objetiva e acompanhamento sistemático –, alguém poderia imaginar que no Brasil não temos esses problemas de gringos. Mas todos sabemos a verdade: a academia brasileira sempre lutou pelo seu direito de falar e investigar sem intervenções “fascistas” do Estado e da sociedade civil, mas isso não significa que ela sempre lutou pela liberdade de expressão interna, de seus membros individuais. Pelo contrário, a monocultura ideológica na universidade é um fato público e notório.

Deveríamos pensar que os vieses cognitivos, investigados a fundo pela economia comportamental moderna, operam em toda a raça humana, exceto nas universidades brasileiras?

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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