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O enigma do totalitarismo frouxo
| Foto: Pixabay

Era uma vez uma civilização avançada e pródiga. Ela tinha atravessado um século de grandes guerras e alcançado a paz. Não a paz total, que é impossível. Mas um estado sem precedentes de estabilidade entre os povos. Até um muro que simbolizava a fratura política e a cisão ideológica tinha caído. Um novo século começava com a consagração das liberdades individuais e da compreensão sobre as variadas escolhas de comportamento. Finalmente a maioria tinha conseguido estabelecer que raças e credos não podiam ser fatores de segregação. Estava tudo pronto para o início da Era da Harmonia.

Mas a humanidade não quis. Por razões insondáveis – tédio? – jogou tudo fora. E o que levou tanto tempo para ser construído foi ao chão num instante. Destruir é sempre muito mais fácil e rápido.

O novo século tinha começado com um proverbial salto tecnológico unindo de forma instantânea o mundo inteiro. Os avanços da comunicação no século anterior, que já eram grandes, se multiplicaram vertiginosamente. Não era mais questão de poder saber imediatamente o que acontecia em outro hemisfério. Era poder falar – e ser ouvido – instantaneamente do outro lado do mundo. Qualquer um. Senão toda a humanidade, ao menos uma imensa parte dela, incluindo os menos favorecidos – que até então ficavam frequentemente à margem dos benefícios tecnológicos. Uma revolução democrática.

Eis o escândalo: essa revolução democrática virou recaída autoritária. Talvez nem Freud explicasse – ele que revelou tanto da alma humana na virada de século anterior, quando a humanidade caminhava para o surgimento das guerras mundiais. O que houve com os homens?

Machista! Não vai falar das mulheres?

Desculpe, estava me referindo à humanidade.

E só tem homem na humanidade? Não tem mulher?

Acho que não me fiz entender. Quis dizer Homo sapiens.

E a mulher sapiens? Não vai falar da mulher sapiens?

Mulher sapiens?

Tá vendo? Nem tinha pensado, né? “Esqueceu” de mais da metade da humanidade. Isso é preconceito escondido! Mas agora tá todo mundo ligado, vou postar aqui que você é machista.

Não, por favor. Eu estava me referindo a homens e mulheres.

E os gays? E os trans? Não mente, você só falou de homem. Vou viralizar.

E foi assim que a idiotice “viralizou”. Fantasiada de ética. E a viralização do vírus – ou da suposta preocupação com ele – chegou para trazer a apoteose do heroísmo de videogame. As barricadas de empatia cenográfica foram sendo erguidas a cada esquina digital contra o monstruoso inimigo imaginário – o neandertal moderno que eu posso projetar em qualquer um, no meu vizinho, no meu amigo, no meu irmão, bastando apontar o dedo duro para ele dizendo que ele não segue as normas de segurança difundidas pela Lady Gaga, pelo João Dória e pela empática ditadura chinesa. Você está colocando vidas em risco – e cada vez que eu digo isso meus seguidores se multiplicam e empoderam a minha vidinha de merda.

Como isso foi acontecer? Onde estavam escondidos, naquela caminhada aparentemente firme para a Era da Harmonia, o cinismo e a covardia?

Com possibilidades sem precedentes na história de expansão do bem-estar e da liberdade, como fomos parar nessa epidemia de moralismo, egoísmo e tara pelo controle – todos devidamente dissimulados e fantasiados de humanismo? Como viemos parar de repente nessa proliferação de tiranos enrustidos, que querem impor – e estão impondo – variadas armadilhas autoritárias sob um véu de bondade e altruísmo? Como sociedades tão esclarecidas passaram a se sujeitar docilmente à dominação dos medíocres e dos fracos? Como foi possível a ascensão do totalitarismo frouxo?

É tarde demais para uma correção de rumo. A semente da falência talvez estivesse na própria pujança. Quem vai saber? Talvez seja simplesmente o percurso cíclico da natureza. Mas com certeza não há mais chance de ajustes sobre o mesmo trilho. A ruptura da civilização como a conhecemos está dada. A dúvida é se teremos no próximo capítulo o resgate da boa índole ou a consumação do massacre dela.

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