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Mauro Cid
O tenente-coronel Mauro Cid, em 2021, durante viagem a Nova York com Jair Bolsonaro.| Foto: Isac Nóbrega/PR.

Ainda em 2020, escrevi para esta Gazeta do Povo que a leitura feita por Ives Gandra Martins do Art 142 da Constituição era “pantanosa e repleta de omissões” podendo valer “como parecer jurídico para a tomada de uma medida que poderia facilmente descambar para a exceção”. Referia-me a sua interpretação de que o dispositivo atribuiria às Forças Armadas um papel institucional moderador, cabendo a elas, em caso de crise ou conflito insanável entre os poderes constituídos, intervir para dar a palavra final. Ainda que o jurista sempre tenha dito que a eventual ação seria “pontual” e circunscrita a casos específicos, o fato é que militar falando por último será sempre com a baioneta na mão.

Tal aplicação ensejaria um grave precedente, o que poderia levar a intervenções reiteradas, de modo que a democracia dos civis passaria a ser tutelada pelos quartéis. É claro que tal visão, ainda que externada desde muito tempo, cairia na boca e tomaria os corações daqueles que ansiavam por um golpe de Estado, ainda que Gandra Martins tenha sempre tentado se afastar disso.

Uma leitura da Constituição ao gosto do desejo que membros do governo Bolsonaro tinham para justificar um ato de ruptura.

Na última edição de Veja, a revista revela a existência de um plano golpista encontrado no celular de Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro e figura central em outros casos nebulosos como o das joias árabes. Cid mantinha em seus arquivos uma série de considerações feitas por Gandra Martins sobre o uso das Forças Armadas e a aplicação da Garantia da Lei e da Ordem. Segundo a Veja, os dados constam de um relatório produzido pela Diretoria de Inteligência da Polícia Federal e apontam que o advogado respondeu questionamentos formulados via e-mail pelo major Fabiano da Silva Carvalho, militar que frequentou o curso de Comando e Estado-maior do Exército.

Questionado pelo major se o emprego das Forças Armadas poderia ocorrer em situações normais ou apenas em casos de exceção, Gandra Martins escreveu que “pode ocorrer em situação de normalidade se no conflito entre Poderes, um deles apelar para as Forças Armadas, em não havendo outra solução”. Também respondeu que isso se daria nas situações previstas no Art 142: “Inimigo externo ou crise entre os Poderes”.

É, como se nota, uma leitura da Constituição ao gosto do desejo que membros do governo Bolsonaro tinham para justificar um ato de ruptura. Havia o coro, puxado pelo próprio presidente na época, de que o Judiciário, representado pelo Supremo Tribunal Federal, agia para deslegitimar o governo, cassando-lhe prerrogativas. E, por óbvio, a narrativa de que o Tribunal Superior Eleitoral atuava com o objetivo de eleger Lula, num processo eleitoral tido por esses agentes como “não auditável” e até “fraudulento”. Tais condições poderiam ensejar a convocação de uma intervenção das Forças Armadas, como clamavam os radicais reunidos na frente do QG do Exército em Brasília e em outras capitais do país.

É curioso notar que, no curso da investigação sobre os atos antidemocráticos de 8 de janeiro, tenha se encontrado na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres uma minuta propondo que se decretasse Estado de Defesa na sede do TSE, vinculando todo o poder decisório ao Ministério da Defesa e, portanto, aos militares. Seria a tal intervenção devidamente materializada.

A aplicação do Art. 142 como defende Gandra Martins sempre foi minoritária no mundo do direito. A bem da verdade, a exceção dele, nenhum outro jurista conhecido jamais a defendeu. Nada consta no dispositivo que mencione “crise entre os poderes” ou algo semelhante. Ainda assim, essa interpretação ganhou corpo no submundo do poder e nos porões de um Palácio do Planalto ocupado por gente inconformada com a derrota nas urnas. Sua tese saiu dos livros de direito e acabou num inquérito policial.

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