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“Bom dia, tristeza”
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Por Cassionei Niches Petry

Jean Starobinski, nascido em Genebra, Suíça, em 1920, além de crítico literário e professor, é também médico. Curiosamente, inicia A tinta da melancolia – uma história cultural da tristeza (Companhia das Letras, tradução de Rosa Freire d’Aguiar, 564 páginas) abordando primeiro a cura, em capítulo em que reproduz sua tese de doutorado em medicina. É como se dissesse “calma, que esse mal pode ter um fim, vamos entrar nesse mundo sem medo”. E, para usar de um lugar-comum, o autor nos conduz pela mão nessa viagem para conhecer uma das mais misteriosas sensações que temos.

Starobinski vai buscar na arte os melhores exemplos para discutir o tema. Poemas, romances, pinturas, esculturas são alvos de análise na tentativa de entender a melancolia. Dando o tom dos ensaios da obra, nas primeiras páginas temos a tristeza presente na obra de Homero, ou seja, nos primórdios da literatura, mais precisamente no primeiro grande épico da cultura ocidental, Ilíada, em versos sobre o personagem Belerofonte:

 

Objeto de ódio para o deuses,

Ele vagava só na planície de Aleia,

O coração devorado de tristeza, evitando os vestígios dos homens.

 

E é também Homero, agora em Odisseia, que menciona pela primeira vez a propriedade de um medicamento: “Mistura de ervas egípcias, segredos das rainhas, o nepentes entorpece os sofrimentos e refreia as mordidas da bile.”

Durante o trajeto nessa viagem, Starobinski aborda as cartas de Hipócrates. O pai da medicina escreve que foi chamado para curar a loucura do filósofo Demócrito. Antes de utilizar medicamentos, decidiu conversar com o “louco”, mergulhado nos seus estudos. Percebeu que ele estava em plena saúde mental: “Só o acusam de loucura porque não o compreendem direito.”

É a essa ideia do intelectual ou do artista incompreendido que se relaciona a melancolia. No “Problema XXX”, Aristóteles diz que “todos os homens de exceção [filósofos, poetas, artistas] são manifestamente melancólicos”. O título do livro, inspirado em um poema do nobre francês Charles d’Orléans, lembra, além da bílis negra, também a “água escura [que] se transforma em material de escrita”. Preencher o vazio interior é simbolizado pela folha em branco que será manchada com as palavras do poeta, do filósofo ou do romancista. Não por acaso, Machado de Assis usou a mesma expressão através do narrador de Memórias póstumas de Brás Cubas: “Obra de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia (…).” Infelizmente nosso maior escritor parece ser desconhecido do crítico suíço.

Jean Starobinski dedica também um longo capítulo a uma obra fundamental sobre o tema: A anatomia da melancolia, de Robert Burton, “livro-fonte, um tesouro de linguagem para os escritores, e sobretudo um repertório de exemplos num campo em que o exemplo é contagioso”. Interessante é a análise que faz do frontispício da obra, com gravuras que trazem, por exemplo, desenhos de remédios vomitivos ou o sinal astrológico de Saturno, “senhor da melancolia”.

Quanto à pintura, o destaque é a análise do quadro “O retrato do dr. Gachet”, de Van Gogh, um dos tantos que trazem a representação icônica do melancólico, assim como a gravura “Melancolia I”, de Dürer: “o rosto levemente inclinado, o olhar baixo, a mão segurando a cabeça”. De Chirico também é mencionado a partir de um quadro que se chama “Melanconia”, em que o destaque é uma estátua que, como sói acontecer com as esculturas, parece não olhar para ninguém. Para Starobinski, o “sujeito melancólico, privado de futuro, voltado para o passado, devastado, sente a maior dificuldade em receber e retribuir um olhar. Incapaz de encarar, tem a sensação de que o mundo é cego para a sua miséria. Já se sente morto num mundo morto”.

O livro ainda aborda a relação da ironia e da melancolia a partir do pensamento de Kierkegaard, analisa a loucura de Dom Quixote provocada pela melancolia e, principalmente, realiza um estudo amplo da poesia de Baudelaire, o poeta do spleen (o tédio), o mal do século que vai influenciar os poetas românticos, melancólicos por excelência.

Maurice Olender afirma, em uma nota de apresentação da obra, que A tinta da melancolia é um “romance enciclopédico”. Tenho que concordar com o historiador belga. Apesar de eu ter levado mais de um ano para ler a obra, a leitura foi prazerosa, e só demorei porque não queria me desprender dela, pois me acompanhava em cima da escrivaninha a cada leitura de outros livros. Fechado o volume, bate a melancolia de quem se separa de algo importante para a sua vida.

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Cassionei Niches Petry é Mestre em Letras-Leitura e Cognição, professor de Literatura e Línguas Portuguesa e Espanhola no Ensino Médio. Autor dos livros de contos “Arranhões e outras feridas” (Multifoco) e “Cacos e outros pedaços” (Penalux), do romance “Os óculos de Paula”, (Livros Ilimitados) e do livro de crônicas e ensaios “Vamos falar sobre suicídio?” (Kindle/Amazon). Atualmente, é colunista do site Digestivo Cultural, Portal Entretextos e colabora com o Caderno de Sábado do jornal Correio do Povo, de Porto Alegre – RS.

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