| Foto: Marcos Correa

O filósofo italiano Giorgio Agamben aponta, em muitos dos seus livros, a perigosa tendência de governos democráticos a estimular “um estado de emergência permanente (ainda que não declarado no sentido técnico)”. Dispositivo previsto nas constituições, o estado de exceção (defesa ou sítio) responde a uma situação-limite, extraordinária, temporária, em que a segurança do Estado está sob séria e iminente ameaça.

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No entanto, o que na tradição jurídico-política devia ser medida excepcional tem se transformado “em prática duradoura de governo”, espécie de ideologia operacional e administrativa, sob as mais diversas e vagas justificativas. A suspensão de direitos individuais e coletivos, a interceptação de informações sigilosas ou privadas, a agressividade policial sem maiores pudores civilizatórios são medidas cada vez mais recorrentes e, aos poucos, normalizadas.

Por menor que seja minha propensão à histeria política, não é possível fingir que as preocupações de Agamben são exageradas quando, no contexto brasileiro, em onze meses de mandato, o filho do presidente flerta com o autoritarismo, o presidente paquera o autoritarismo, o ministro da economia, liberal entre liberais, corteja o autoritarismo. “O preço da liberdade é a eterna vigilância”, disse, talvez tenha dito, John Philpot Curran (ou Thomas Jefferson).

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Jair Bolsonaro foi eleito de forma legítima. Embora ele duvidasse da lisura do pleito e da confiabilidade das urnas eletrônicas, sua vitória se confirmou sem margem para questionamentos. Não importa, para fins eleitorais, o que pensemos dele e de seu governo. Ganhou, levou, deveria governar com a prudência e a relativa tranquilidade dos eleitos. Mas não. Quase diariamente se arma contra os perigos de uma guerra que só acontece na sua cabeça.

Não é razoável, não pode ser considerado razoável, que em tempos de paz um mandatário e seus ministros evoquem anos de chumbo como se fossem anos dourados. No pacote anticrime de Sérgio Moro, a controversa proposta de excludente de ilicitude em ações policiais. Na fala de Jair Bolsonaro, a mais do que controversa proposta de excludente de ilicitude em “certos tipos de protestos”. Na entrevista de Paulo Guedes, a inoportuna menção a um novo AI-5.

Sim, eu sei, Guedes não assume explicitamente o que diz. Atribui aos outros a ameaça. Sua declaração é preventiva. Na hipótese de manifestações petistas, pede que “sejam responsáveis, pratiquem a democracia. Ou democracia é só quando o seu lado ganha? Quando o outro lado ganha, com dez meses você já chama todo mundo para quebrar a rua? Que responsabilidade é essa? Não se assustem então se alguém pedir o AI-5”. Se isso, então isso, depois não reclamem.

Mas é justamente esse o espírito de todo governo que brinca com a excepcionalidade: antecipar medidas, sugerir reações, amplificar crises, produzir tempestade pra vender guarda-chuva. Lula pode bradar o quanto queira, com seu fervor mitomaníaco, porém nada indica que o povo está disposto a apoiar quebra-quebra. Se a fala de Lula merece resposta forte, que resposta merecem as falas do próprio Bolsonaro, desde antes das eleições? O ministro, pouco atento ao conselho bíblico, repara no argueiro em olho alheio e descuida da trave em seu próprio olho.

Que tipo de liberalismo é esse, que adula tantas vezes a força estatal? Que tipo de conservadorismo é esse, que testa a resistência das instituições? Um governo não se faz apenas com atos, medidas e intervenções concretas, “o que se vê”, mas também com o capital simbólico investido e acumulado, “o que não se vê”. A política é uma atividade essencialmente discursiva, retórica e, sobretudo, moral.

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Bolsonaro e sua trupe pretendem, de fato, dar um golpe de Estado e governar sem as demoras e as amarras da democracia? Talvez não pretendam. Mesmo que queiram, é provável que não tenham condições para fazê-lo. Contudo, seu compromisso com a tradição democrática é frágil; seu apelo à semântica e aos valores da guerra é recorrente; seu casamento com a liberdade, para fazer uso da imagem tão cara ao presidente, é daqueles arranjados. Só para manter as aparências.