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Oskar Werner como Guy Montag em "Fahrenheit 451", adaptado por François Truffaut.
Oskar Werner como Guy Montag em "Fahrenheit 451", adaptado por François Truffaut.| Foto:

Vergonha na cara não é dos bens mais abundantes e distribuídos no Brasil.

Se em época de eleição tem político que aparece para inaugurar até a chegada da primavera, no desastre todo mundo some. Foi ele, foi o outro, foi aquele lá.

Nos Estados Unidos, os responsáveis teriam sido demitidos. No Japão, cheios de honra ferida, cometeriam suicídio. No Brasil, os culpados vão tomar Chicabon.

A destruição do Museu Nacional, entretanto, é que nem filho de puta: ninguém sabe ao certo quem é o pai, mas todo mundo participou um pouquinho. Brasileiro não faz nada de ruim sozinho, o demérito é sempre obra coletiva. Foram anos de abandono. Como num livro do Paulo Coelho, “nada é por acaso”.

Mas isso não nos impede de apontar responsáveis diretos e imediatos. Por exemplo, a administração da UFRJ, mantenedora do museu. À parte os 520 mil anuais destinado para a manutenção, a própria universidade tem orçamento muito maior; suficiente para que o prédio não tivesse o fim que teve.

Acontece que a UFRJ aparentemente tem ensaiado uma peça inspirada na distopia Fahrenheit 451, de Ray Bradbury. Há um “histórico de incêndios” nos prédios da instituição. Foram seis ocorrências nos últimos anos.

O que me parece bem apropriado. No romance de Bradbury, publicado no Brasil pela Globo Livros, Guy Montag é um funcionário público exemplar. Bombeiro dedicado a queimar os livros perigosos para a ordem social.

A única diferença é que ele tem uma crise existencial e se arrepende. Coisas da ficção.

Antes que eu me esqueça, a UFRJ tem em sua reitoria gente que escreve “todos, todas, todes”. Quase todos, todas, todes filiados ao PSOL, aquele partido que não gosta de burguesia, monarquia, cultura ocidental e gramática normativa, essas coisas de gente branca que oprime os outros.

Como num livro do Paulo Coelho, “nada é por acaso”. Mas o previsível acaso não acaba aí.

Não apontemos dedos somente para a reitoria da UFRJ. Apontemos dedos também para os governos anteriores, petistas principalmente, porque afinal de contas a herança (maldita? Que ironia) é deles. Não foram eles que financiaram a Copa do Mundo? Foram. Não foram eles que financiaram os Jogos Olímpicos? Foram.

Pois foram eles que financiaram o espetáculo pirotécnico da Quinta da Boa Vista. Nero teria ficado orgulhoso.

Além do dinheiro pouco ou desviado, há outros problemas. Por exemplo, a burocracia delirante e a política em torno.

Havia dinheiro e esperança para o museu. De acordo com o Brazil Jornal, de Geraldo Samor, há vinte anos o empresário Israel Klabin conseguiu 80 milhões de dólares do Banco Mundial para um vasto projeto de recuperação e modernização do Museu Nacional.

A condição: um plano de governança. Que fosse criada uma Organização Social (OS), fundação privada sem fins lucrativos, para cuidar do dinheiro. Condição essa negada pela UFRJ, que não admitiu ceder o controle do museu. Deu no que deu.

Para além da mesquinharia política de costume, esse tipo de coisa me faz lembrar dum ensaio de Theodore Dalrymple sobre Havana.

O escritor inglês diz que a degradação da capital e sua lenta destruição parece ter sido feita de propósito. Fidel Castro precisava que a lembrança de um passado bom e mais bonito se apagasse da memória dos cubanos, para que o comunismo fosse a única referência possível.

Só isso explica certas coisas.

Enquanto o incêndio ainda destruía o Museu Nacional, o inacreditável prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, declarava o seguinte:

Trágico incidente que destruiu um palácio marcante da nossa história. É um dever nacional reconstruí-lo das cinzas, recompor cada detalhe eternizado em pinturas e fotos e ainda que não seja o original continuará a ser para sempre a lembrança da família imperial que nos deu a independência, o império, a primeira constituição e a unidade nacional.”

Essa é a percepção de nossa elite política e econômica (e, convenhamos, de quase todo o povo): basta reconstruir tudo, recompor cada detalhe, trocar a madeira por aglomerado, o linho por microfibra, o museu por cidade cenográfica. Como se a perda fosse de um prédio qualquer, de um amontoado de cacarecos, de uma pilha de objetos indistintos.

Compra-se tudo na China.

Apelar à reconstrução do acervo insubstituível de um museu é a prova de que ninguém sabe nem vagamente do que se trata, nem quer saber. Por isso que essa tragédia é apartidária: todos participam um pouquinho do descaso. Todos são um pouquinho pais do filho da puta.

O Brasil é kitsch.

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