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No Supremo Tribunal Federal (onde mais seria?) discute-se a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, que propõe questionar os artigos do Código Penal que criminalizam o aborto. Nada de novo no front.

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O aborto tem sido pauta prioritária de grupos dos mais variados matizes ideológicos. Poucas coisas comovem tanto a audiência quanto a necessidade de se abortar livremente e com a devida assistência médica. Em virtude de certas doenças no feto, como anencefalia, o Supremo já salomonicamente decidiu (ADPF 54), em abril de 2012, numa interpretação pra lá de controversa.

Não bastassem os casos em que o aborto não é criminalizado – risco de morte iminente da mãe e resultado de estupro –, a meta agora é descriminalizar o aborto até a 12ª (por enquanto) semana de gestação, desconsiderando o texto constitucional e a legislação infraconstitucional que lhe segue. De repente, o que sempre foi aceito como constitucionalmente legítimo, não mais o será.

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Não é preciso escrever em caixa alta, como homem branco de meia-idade e conspiracionista, para considerar que os diversos movimentos querem, de uma vez por todas, tirar do nascituro o estatuto que ora lhe garante o ordenamento jurídico: o de ser humano pleno, ainda que sua personalidade esteja em desenvolvimento. Um ser humano outro que não a mãe. Um ser ontologicamente distinto, que não se confunde com o fígado, o baço, os pelos, a ideologia da mãe.

Que isso, mais uma vez, seja decidido pela turma de notáveis da Suprema Corte já seria equivocado o suficiente. O STF tem papel relevantíssimo na vida nacional, mas sua importância tem legitimidade na medida em que cumpre o papel que lhe cabe, e não usurpa o de outros poderes. Se fosse o caso, caberia ao Legislativo – à sociedade – o debate acerca do aborto. Não sendo assim, de mutação em mutação o entendimento vai se esvaindo, o sentido da lei vai se tornando poroso, e, por fim, perde razão de ser.

Mas não é só isso. Não se trata apenas de Código Penal ou de legislação civil. Uma possível (embora pouco provável) decisão popular pela liberação do aborto não o tornaria objetivamente legítimo, filosoficamente justificável. A política, mesmo quando feita pelas vias corretas, não pode ter caráter totalizante, sob pena de se tornar instrumento totalitário. Os padecimentos da gestante são graves, verdadeiros, e requerem compaixão e cuidados; entretanto, não são mais graves, verdadeiros, que a vida do nascituro.

O que está em jogo é a própria concepção de vida humana, e a proteção de valores que não são necessariamente religiosos, mas civilizacionais. Julgar todo e qualquer direito ao corpo – e à sua liberdade – como maior que a vida é inverter os termos do problema. De resto, o pano de fundo axiológico dessa reivindicação é menos inocente e bem-intencionado do que parece. O aborto como prática terapêutica, ética social e direito inalienável corresponde a anseios e disposições ideológicas aparentemente inconciliáveis. Matar nascituros é uma atividade que une direita e esquerda, fascistas e liberais, feministas e misóginos.

Enquanto muitos liberais acreditam que o aborto é uma das liberdades inalienáveis do indivíduo perante o Estado, esquerdistas pretendem que o Estado garanta clínicas salubres, bem equipadas e gratuitas para todos. Se fascistas querem eliminar indivíduos de raças impuras, mulheres perfeitamente civilizadas desejam que seus filhos não nasçam com falhas genéticas ou com baixo quociente intelectual. Enquanto feministas advogam o direito ao aborto como apropriação do próprio corpo e aplicação das próprias regras, machistas chineses ponderam que o nascimento de mulheres é um problema econômico e de aplicação das próprias leis, e o resultado é menos mulheres nascendo na China.

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Isso tudo não é apenas questão de saúde ou ética pública. Em meio a tantos probleminhas desimportantes, pretendem que o aborto seja opção como qualquer outra, decisão livremente tomada, alternativa razoável entre tantas, serviço a ser disponibilizado em clínicas privadas e em hospitais públicos, nesse vasto supermercado cultural em que compramos nosso lifestyle, última moda da era pré-colombiana, normalização da moral prêt-à-porter.