Paulo Francis disse que a melhor propaganda anticomunista é deixar um comunista falar. A boutade não se aplica somente a comunistas, mas a ideólogos de todos os tipos, a bichos de todas as florestas, no inusitado ecossistema político nacional. Jair Bolsonaro é um deles.
O tipo acabado de matuto intelectual que se aproveitou do antipetismo para se dizer conservador, liberal ou o que seus fiéis queiram que ele jure ser na undécima hora. Se ele disser que faz chover, dançam. O mal do petismo, para além do petismo propriamente dito, é esse: produzir, como efeito colateral, adversários siameses. Tubinambás políticos de fazer medo em Hans Staden.
Em entrevista à Folha de S.Paulo, Bolsonaro enfileira as respostas evasivas e grosseiras de costume, para alegria dos súditos. Tudo o que Dilma fazia, que era responder nada com nada da forma mais agressiva possível, Bolsonaro faz. Dilma não podia fazer, Bolsonaro pode.
Questionado sobre o auxílio-moradia, ele responde que, solteiro, usava o dinheiro “para comer gente”. E, armado como sói, arremata:
…é a resposta que você merece.
A entrevista toda é bastante, digamos, instrutiva. Militantes se apressaram em fazer o que militantes fazem: justificar o injustificável. Bolsonaro teria sido “irônico”: ele não usou dinheiro com prostitutas ou namoradinhas de ocasião, mas essa é a resposta que a jornalista merecia. Outros ainda, tomando a fala como verdadeira, correram a dizer que o que faz o político com o dinheiro que recebe é da conta dele, não nossa. Prestar contas virou moralismo. Espantar-se com isso é moralismo barato.
Curioso: muito do que fundamenta a campanha de Jair Bolsonaro é precisamente o moralismo barato. O moralismo infeccioso que toma conta da política e transforma indivíduos chinfrins em epígonos da moralidade, dos bons costumes, do espírito republicano.
A mim pouco importam os valores mais íntimos do candidato. Dele ou de qualquer outro. Política não se faz, não se deve fazer, com a mesma régua moral com que medimos a vida privada. Se o presidente é adúltero, casto, homossexual, judeu – só importa na medida em que suas preferências tomem a frente das escolhas públicas. Quando os gastos públicos se confundem com os gastos púbicos, temos um problema moral relevante em política.
Quero do presidente, do prefeito, do vereador (já que infelizmente existem) que tratem de impostos, de liberdade econômica, de instituições justas e, se possível, que tratem de não atrapalhar muito. Há uma zona de indeterminação moral, no conduzir a coisa pública, que pode ser, e quase sempre é, tolerada. Se por moral se entender, reitero, as decisões mais íntimas e intransferíveis.
Bolsonaro ter usado o dinheiro público com o nobre objetivo de “comer gente” importa menos que o fato de, afinal, ter usado dinheiro público para diversão privada – tenha comido gente ou picanha. Que tenha usado o dinheiro público sem precisar dele. Que, tido e havido como esperança de renovação política, admita práticas que dariam orgulho à família Sarney.
Porém, não apenas isso. Bolsonaro dizer o que disse não importa somente porque usou dinheiro público com festinhas privadas, ou porque usou o dinheiro com o que quer que fosse, sem precisar dele. Também importa que Bolsonaro seja incapaz de responder, de falar, de argumentar como quem se quer presidente.
Ele não admite ser questionado, inquirido, comentado. Toda entrevista é uma batalha, toda discussão é uma guerra. Jair Bolsonaro lembra aqueles veteranos que perderam a perna e sentem dores cruciantes na perna que já não têm. A diferença é que Bolsonaro não foi para guerra e não sente dor nenhuma na perna que não perdeu. Para ele, a jornalista da Folha merecia aquela resposta porque toda pergunta merece esse tipo de resposta. Resta saber se, depois de tantos anos de mistificação petista, Jair Bolsonaro é a resposta que nós merecemos.