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Para muita gente, a soporífera arenga do ministro Celso de Mello, na última semana, foi um voto “histórico”. Ô palavrinha vilipendiada. Algures li um artigo em que o autor arriscava suas “primeiras impressões” sobre o cartapácio. Subentende-se que o voto é tão, mas tão histórico que, por ora, temos somente primeiras impressões, tamanho o impacto intelectual provocado no Ocidente e adjacências.

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Pois eu já tenho primeiras, segundas e, se calhar, terceiras e quartas impressões. Consigo a proeza porque sou mortalmente superficial, vejo tudo superficialmente e, por atração entre semelhantes, reconheço a superficialidade quando aparece sob a minha barba. O voto do ministro do STF foi tudo, menos histórico. Foi tudo, menos profundo. Foi tudo, menos permanente.

O magistrado desfilou argumentos e destilou vapores que vão do vintage de Simone de Beauvoir ao prêt-à-porter de Judith Butler. As afirmações de duvidosa cientificidade já conhecidas: não se nasce mulher, torna-se mulher; o gênero é construção psicossocial; o indivíduo está no corpo errado.

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Sentimentalismo de lado, todo esse movimento não trata, a sério, das violências que sofrem os indivíduos de orientação sexual heterodoxa. Para isso já temos a chatíssima solução alicerçada nos princípios liberais, no estado de direito, na isonomia, no constitucionalismo, no império da lei, na força policial. Essas amenidades não são encontradas em países que adotaram outros, aspas, códigos de conduta esperada e sanção presumível.

No arranjo civilizacional que mais ou menos tem funcionado – e que muitos desperdiçam, com o desperdício típico da abundância – foi possível, e é bom que tenha sido possível, o sufrágio feminino, o desbunde sexual dos anos 60, a pílula, a união civil, o divórcio civil, a liberdade gay, a reconfiguração da família e tantas outras conquistas irrenunciáveis. Mas nada disso basta, porque grupos de pressão vivem de pressionar e reivindicar coisas, mesmo as já conquistadas.

Aparentemente, alguns movimentos e grupos não querem atingir objetivos específicos, porque só existem em função deles, das batalhas travadas em torno deles. O que será de uma feminista se todas as reivindicações pelas quais se manifesta forem atendidas e reconhecidas? Terá de, por exemplo, aproveitar sua liberdade e escrever coisas que não se resumam a manifestos em favor da liberdade de escrever manifestos.

Por incrível que pareça, isso já acontece. Não há impedimento nenhum para que mulheres atuem na política, na literatura, no cinema, na ciência, na indústria, nos esportes, nas minas de carvão. Mesmo nos países da ocidentalidade periférica, como os da América Latina, abundam exemplos. Já quanto aos gays, ou de orientação sexual diversa, são protegidos pelo arcabouço jurídico de que desdenham. As inaceitáveis agressões que porventura sofram estão previstas no odioso e violento Código Penal, aquele que encarcera muito; na Constituição, que é burguesa; nas declarações de que o Brasil é signatário, mas não obedece.

Apelar a uma circunscrição ético-jurídica ainda mais estrita, inventar penas ainda mais específicas, expandir entendimentos já tão frouxos, flertar com o crime de opinião e de pensamento, acentuar diferenças em vez de louvar aproximações, colonizar o direito com ainda mais germes ideológicos – tudo isso é revelar o valor das cartas e deixar algumas pontas soltas. Perde-se uma grande oportunidade em nome de mesquinhas vantagens.

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É preciso chegar a um consenso sobre as possíveis soluções para a violência estrutural e epidêmica do país. No Brasil, o crime violento é premiado com a impunidade. Morrem muitos gays e muitas mulheres por aqui? Morrem, pois morrem muitas crianças, muitos jovens, muitos velhos, muitos negros, muitos brancos, muitos homens. Morre gente demais. O recorte, mais do que racial ou de gênero, é social. Morrem os mais vulneráveis, emparedados entre o Estado e o narcotráfico. Essa aliás é uma das pautas ditas reacionárias, sempre alvo de críticas acerbas: o criminoso tem de ser punido com rigor, não tem? Depende.

Alguns fiadores do sofrimento alheio, que tanto criticam o encarceramento em massa e a violência policial, são os mesmos que, quando lhes interessa, fazem campanha para mais e maiores penas, mais agravantes, mais qualificadoras, mais artigos que prevejam comportamentos já contemplados no Código. Tudo depende do crime, do criminoso, da vítima, do gênero, da conta corrente, da filiação partidária, da cor da ideologia, até do governante em exercício. Indivíduo cometeu latrocínio? Solta. Indivíduo fez discurso de ódio? Prende.

Encarceramento no bandido dos outros é refresco.

Torno ao voto do ministro Celso de Mello. Neguei que tenha sido histórico, como quer acreditar certa leitura mais enviesada. Pensando bem, superficial que sou, Pedro de mim mesmo, nego minha negação e reconheço: talvez sim, talvez tenha sido um voto histórico. Historicamente exemplar. Não no sentido de que ficará para a história, mas sim como aquele voto que flui com a história, que se atrela à mais permanente historicidade, que de histórico é possível que só tenha uma única característica: a banal e comprometida atualidade da crônica.