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MC Diguinho teve seu funk “Só Surubinha de Leve” excluído das plataformas de streaming. Verdadeiro atentado contra a arte livre. O autor dos inesquecíveis versos

“Taca bebida/ depois taca pica/ depois abandona na rua”

teve de, muito a contragosto, se retratar, explicar o inexplicável, negar o inegável e, por fim, relançar a obra-prima em versão cheia de cavalheirismo. Agora cantamos assim:

“Taca bebida/ depois taca e fica/ e não abandona na rua”

A transformação foi radical: MC Diguinho, de repente, ganhou ares de Lorde inglês. Ele continua a propor que se “taque a bebida” na senhorita, mas depois de “tacar” o que presumo ainda seja a “pica”, ele agora pondera: “taca e fica”. Ou seja, taca a pica e pede em casamento. Não bastasse, gentleman como poucos, sentencia: “e não abandona na rua”. O homem tacará a bebida, em seguida a pica, ficará para ver o resultado e recolherá os destroços para dentro de casa.

Arroubos líricos à parte, comovente a revolta da audiência. Feministas, intelectuais, aspirantes a reality show: todos apontaram dedos contra o machismo, a misoginia, a apologia a crimes de toda sorte. Da noite para o dia, voilà!, pararam para ouvir o funk carioca. Quando o mesmo funk legitimava crimes outros ninguém soltava um pio. Aprendemos que há crimes e crimes.

Por outro lado, inevitável – deliciosamente inevitável, confesso – lembrar da histeria com que artistas trataram a histeria com que reacionários trataram as exposições polêmicas em Porto Alegre e em São Paulo. A história é conhecida: em Porto Alegre, exposição de obras de arte “Queer” retratavam a sexualidade não convencional de muita gente. Em São Paulo, numa performance esteticamente irrelevante, uma garotinha tocava a perna de um homem nu, que fazia as vezes de escultura de Lygia Clark.

Nos dois momentos houve críticas de conservadores contra o que diziam ser apologia à perversidade e à pedofilia. Foi muito fácil para que os artistas engajados, a classe em geral e mais alguns palpiteiros julgassem a reação como reacionarismo, e fizessem dos limões, limonada: a arte tem de ser livre, criticar qualquer tipo de arte é coisa de brutos, estética não se submete a critérios morais.

End of the affair? Não exatamente.

A grita em torno de MC Diguinho e sua letra misógina, machista, perversa e degenerada – e seu contexto? e seu “lugar de fala”? – recoloca o problema noutros termos. De repente, não mais que de repente, quem antes gritava por liberdade agora grita proibições. Quem antes negava à arte qualquer responsabilidade moral agora descobre que imoralidade na indignação dos outros é refresco.

E, antes que me corrijam, para todos os efeitos o que MC Diguinho faz é arte. Pois me recordo muito bem de que a classe artística, autonomeada detentora das definições sobre o que é arte e o que não é arte, garantiu que um homem nu sendo tocado por uma garotinha era arte. Se a linguagem artística é autorreferente e chamamos de arte o que artistas dizem ser arte, então MC Diguinho é tão artista quanto o coreógrafo Wagner Schwartz.

Ou não. Descobrimos que existem critérios objetivos que determinam o estatuto artístico de uma obra; de acordo com esses critérios, a letra de MC Diguinho é apologia ao estupro; não é arte. Logo, segundo os mesmos critérios, parece-me razoável considerar que talvez a performance de Wagner Schwartz se aproxime duma zona fronteiriça, controversa, entre o que é arte e o que é apologia à pedofilia. Sendo assim, aquela indignação reacionária era justa em algum ponto. Era uma indignação possível. Ou tudo é arte, ou nem tudo é arte. Fico com a última opção. Os artistas, de maneira geral, sempre ficaram com a primeira. Parece que alguém terá de rever seus conceitos mais do que depressa.

Além disso, o que restou indiscutido em todos esses últimos episódios envolvendo arte, nudez, criança, estupro, misoginia, machismo, moralidade é o seguinte problema: quando um artista faz determinada arte com o intuito de questionar a moralidade vigente, ele está provocando discussões que podem até começar, mas não terminam em arte.

Pois bem: todos aqueles que defenderam as manifestações artísticas, e debocharam das reações contrárias, são também proprietários do debate moral? Percebo que um artista possa dizer ao povo, do alto do seu caixote mental: “Povo, você não entende nada de arte contemporânea!” Mas o artista, por sua vez, entende mesmo de moralidade? Todo artista escreve éticas a Nicômacos na calada da noite? O debate moral é só dele, ou o povo pode participar da discussão?

Ora, se a arte quer subverter, questionar, provocar a moralidade, ela então não é só arte; é também discurso moral. Sendo discurso moral, não se pode impedir que o debate – e porventura a reprovação – aconteça. Tratar quem quer que rejeite determinada arte como matuto, como caipira, é compreensível. Artistas, em tese, sabem do seu metiê. Mas não são filósofos morais, psicólogos da infância, juristas, antropólogos. Portanto, quando provocam, com sua arte muito sofisticada e muito contemporânea, debates que vão para além dela, têm de admitir que também invadem terreno do qual não são donos. Quando tudo é arte, MC Diguinho e Wagner Schwartz, Queer Museu e “Só Surubinha de Leve” são lados da mesma falsificada moeda.

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