Foto de Gabriela Biló/ Estadão| Foto:
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Sérgio Fernando Moro, o maior símbolo do combate à corrupção no Brasil, demitiu-se do Ministério da Justiça. Ao fazê-lo, demitiu Jair Bolsonaro de suas obrigações de fariseu. Agora o presidente está mais à vontade em seu próprio elemento. Encontrou a paz.

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Ninguém que tenha andado em terra brasilis nos últimos meses poderia ter qualquer dúvida sobre o que aconteceu e o que acontecerá. O tecido bolsonarista é feito de retalhos mal costurados de valores que não lhe caem bem. Tem valor sobrando e faltando no paletó do defunto.

Bolsonaro nunca foi liberal, conservador, democrata. Sempre foi estatista, preconceituoso e autoritário. Eis a história. Ecce homo. Deputado do baixo-clero, não tinha tamanho para a grande corrupção. Viveu de benefícios, de rachadinhas, da mediocridade paga com o erário.

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Acontece que a história tem sua própria (falta de) lógica.

Mais do que a Lava Jato, capitaneada por Moro, o espírito do lavajatismo insuflou vida a um meme. Emprestou alma a um boneco. Ao criminalizar de forma generalizada a política, a operação debilitou o organismo enquanto lutava contra a doença.

Diante dos crimes cometidos pelo PT, já desde o Mensalão, o antipetismo funcionou como argamassa para unir personagens velhos a biografias novas, antigos vícios a inéditas hipocrisias. Lula e o PT têm culpa sim. Mas o antipetismo não explica tudo.

Pois o movimento que resultou na eleição do Messias tem características muito próprias. Não se trata apenas do petismo às avessas, ou do simplório embate entre esquerda e direita. É ruim em si mesmo e à sua maneira.

O bolsonarismo aposta na desvinculação de significante e significado. As palavras se esvaziam do sentido original e se reduzem a ecos que podem ser preenchidos, alterados ou invertidos com o recheio semântico conveniente. Uma variação da newspeak, de George Orwell.

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Só assim uma candidatura tão inautêntica, tão sem lastro nem substância, pôde se tornar viável. Ocorre que governo eleito precisa governar, mais do que falar. O país imaginado e o país real trombariam nalgum ponto. O embate entre mistificação e realidade se acirraria, cedo ou tarde.

Acirrou-se. Se o plano desenvolvimentista batizado de Pró-Brasil asfixia as veleidades liberais de Paulo Guedes, a deserção de Sérgio Moro escancara de vez – e principalmente materializa – a mentira escandalosa de um governo ético.

O ex-juiz acusou o presidente de crimes gravíssimos e confirmou ter provas. Garantiu que nem mesmo o PT tentara interferir tanto na Polícia Federal. Jair Bolsonaro quer deliberadamente submeter a polícia à sua tutela. Na prática, fazer dela uma polícia política.

Dos notórios avalistas intelectuais e morais desse governo, representa muito que tenha sido Sérgio Moro, e não Paulo Guedes, o primeiro a ser jogado ao mar. A ordem altera o produto.

Se Guedes fosse demitido, a responsabilidade seria debitada na conta da oposição, dos governadores, do coronavírus, da China, do Rodrigo Maia, “das forças ocultas”. A demissão de Moro não se justifica. Seu valor era simbólico, imaterial, incalculável.

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Para qualquer “espectador engajado”, porém não comprometido, o desfecho disso tudo era previsível. Não se trata de um projeto que se perdeu nas colisões e erosões da realpolitik. Ao contrário: radicalizou o que sempre foi, tornou-se igual a si mesmo, fez as pazes com sua verdadeira origem. Consumou-se.

Enfim, o governo está morto. A morte foi declarada por volta das 11h de ontem. Os parentes já foram avisados. A assessoria remunerada e vocacionada já publicou suas notas e calibrou o moralismo ad hoc. O cadáver começa a cheirar mal. Os urubus disputam a carniça ideológica grudada aos ossos. O velório tende a durar até 2022.