Na edição de fevereiro da Revista Piauí saiu um texto importantíssimo do prof. Lorenzo Mammi intitulado “A era do disco”. O subtítulo “O LP não foi apenas um suporte, mas uma forma artística” indica a tese principal do texto, mas ele vai muito além disso.

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No formato de um texto de revista, o artigo é curto e muito denso. A erudição do autor recupera várias questões relacionadas a forma e conteúdo, suporte e mensagem, mercadoria e obra de arte. Mammi parte da história do livro, ou melhor, do texto escrito e seus suportes, para estabelecer uma base de comparação com o fonograma, a princípio considerado como suporte, mas, como demonstra Mammi em defesa de seu argumento, essencialmente uma forma de arte que transformou totalmente a maneira como a música é produzida e veiculada.

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Já estou aqui preocupado em como faço para xerocar o formato de página grande da Piauí, pois certamente quero tornar este texto uma referência obrigatória para meus alunos de História da Música. A gente já discute a questão do fonograma a partir de dois textos muito interessantes: o capítulo “Máquinas infernais: como as gravações mudaram a história da música”, do livro Escuta só, de Alex Ross e o capítulo inicial do livro Maestros, obras-primas e loucuras, de Norman Lebrecht. No texto do Alex Ross, uma reflexão sobre a história das tecnologias de gravação e a maneira como os músicos e os ouvintes se relacionaram com o fonograma. No texto do Lebrecht, uma história do surgimento da indústria fonográfica e as primeiras gravações que transformaram a música em um produto vendável. Além destes dois textos, eu fiz um post com imagens históricas. Falta ainda eu trabalhar melhor o livro do Humberto Franceschi sobre a Casa Edison, rico em imagens e documentos históricos (mas sem uma reflexão mais aprofundada).

O texto de Lorenzo Mammi trata a questão por outros aspectos. Grandes insights sobre a maneira como era a relação entre música como som e partitura como suporte, e a fruição nas salas de concerto, e a maneira como isso mudou a partir do disco de 78 rotações e sua articulação com a rádio difusão. A grande consequência foi a hipertrofia da canção como forma privilegiada:

Houve um “século da canção” (para retomar o título de um livro de Luiz Tatit) por que houve um século do disco.

Mas o foco do texto é a era de ouro do LP, entre meados da década de 1950 até o final da década de 1970. A invenção de uma tecnologia capaz de ir além dos 3 minutos de gravação permitiu uma nova relação com a tradição clássica, novas escutas que permitiram uma nova vanguarda (da geração de Boulez e Stockhausen), e principalmente novas formas de música popular.

Foi nessa época e por esses meios, muito mais do que pelas vanguardas do começo do século XX, que a música contemporânea alcançou sua plena autonomia em relação à tradição clássico romântica, quanto a recursos, formas e modalidades de escuta. Foi dessa época, provavelmente, a melhor música erudita do século. Mas é dessa época também o melhor jazz, do bebop ao free; quase todo o rock relevante, de Elvis Presley aos Clash; a bossa nova e o auge da MPB; Janis Joplin e Maria Callas; a melhor Ella Fitzgerald e o melhor Frank Sinatra. E, num lugar que é só deles, são dessa época os Beatles.

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Para Mammi, os primeiros músicos a usarem de forma consistente o novo formato foram Miles Davis, com Kind of Blue e John Coltrane, com A love supreme. Mas não há dúvida de que o auge da concentração de criatividade e talento proporcionada pela indústria do LP foi representada pelo disco Sargent Peppers, dos Beatles, do qual Mammi faz uma interessantíssima análise estética.

Como não podia deixar de ser, o texto inclui um lamento sobre o fim das formas de escuta e de sociabilidade construídas em torno do LP (Mammi é da geração que viveu isso no seu auge, pois ele é de 1957), refletindo sobre a diluição do potencial artístico que está contida na migração para o CD e depois para o streaming na internet. Em última instância, o autor considera que a democratização das tecnologias de gravação e circulação possibilitam uma pulverização da produção de boa qualidade e uma consequente diluição do significado social do que é produzido. Trocando em miúdos, em toda esquina pode ter alguém produzindo coisas de altíssimo nível, mas a inexistência de uma concentração de recursos numa indústria dominante torna inviável o surgimento de novos músicos com a relevância dos Beatles.

Para Mammi, ainda está em aberto o ressurgimento do vinil como suporte, afinal existem correntes minoritárias mas significativas que ainda insistem em usar este suporte para novas produções.

Eu ainda estou em dúvida sobre a pertinência das análises que ele faz sobre a cena contemporânea, afinal, fica difícil separar sua capacidade de análise da contaminação pelo evidente saudosismo que ele traz pela era de ouro do LP. Entretanto, se as previsões catastróficas sobre a contemporaneidade e o futuro que se desenha são questionáveis, a avaliação histórica do papel central do LP na cultura do século XX é simplesmente incontornável.