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O livro de Xabier Basurko foi publicado pela primeira vez em 1964, em meio à agitação intelectual do Concílio Vaticano II e interligado ao fortíssimo movimento de reforma litúrgica. A tradução para o português veio só agora em 2005, por uma série dedicada à música e à liturgia pela editora Paulus.

A tradução é muito bem vinda, porque se trata de assunto sobre o qual há muita carência de estudos, especialmente em português e em catálogo. Por exemplo, há outros autores que vieram tratando disso com profundidade pela mesma época que o Basurko, mas é tudo coisa difícil de encontrar hoje em dia. Por exemplo, tem o ótimo Adoração na igreja primitiva de Ralph Martin, que felizmente recebeu uma nova edição em 2012 – mas é um livro que só trata de liturgia, culto e Escrituras, quase nada de música diretamente (a não ser sobre aspectos de seu uso no culto). Tem ainda The sacred bridge e La foi et le culte dois outros estudos essenciais da mesma época do trabalho do Basurko (ele que ele usou e cita na sua bibliografia) que continuam sem tradução para o português e sem novas edições nas línguas em que foram escritos.

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Para a gente ter uma ideia da importância destes estudos, basta dizer que o aggiornamento posto em prática pelo Concílio Vaticano II foi provavelmente a maior guinada já dada pela igreja romana em seus muitos séculos de existência. É comparável ao nível das mudanças que o Papa Francisco vem pondo em prática, sob alguns aspectos, mas sob outros foi coisa muito mais profunda. Basta que se diga que a igreja aboliu a obrigatoriedade do culto e dos cânticos em latim, coisa que a igreja manteve por 1500 anos durante os quais o latim já não era uma língua falada no cotidiano, mas apenas uma língua de sábios e a língua da liturgia. Permitir o canto e o culto em vernáculo (na língua local de cada fiel) é uma coisa que os protestantes já tinham adotado como primeira medida no século XVI, e que a igreja romana ainda segurou por mais 450 anos – e que talvez seja o principal fator de aproximação entre a igreja e o fiel comum.

O fato de que o latim tenha se mantido por tanto tempo diz muito sobre o formato elitista adotado pela igreja romana. A volta ocorrida na direção do povo na década de 1960 (quando a igreja saía em frangalhos depois do papel vergonhoso dos cristãos no apoio ao nazismo) tornava necessário um estudo como o produzido por Basurko. Nos primeiros séculos os cristãos tinham sido uma seita perseguida, tanto dentro do judaísmo (de onde saiu) como no contexto das práticas religiosas do Império Romano. Para estas comunidades minoritárias e perseguidas, o canto comunitário era fator essencial de identidade e sobrevivência. Tanto quanto as Escrituras ou até mais (como bem demonstra o Ralph Martin no livro linkado acima, muita coisa que entrou para o cânone do Novo Testamento foi cantada nos cultos muito antes de ganhar forma escrita) – os cânticos eram fator de coesão e sustentação da fé.

Se depois a Igreja se tornou uma instituição ligada ao poder imperial e à elite aristocrática, a música litúrgica perverteu-se nos seus usos intelectualizados e refinados e afastou-se do povo por vários séculos. Até o ponto em que a tentativa de um resgate da ligação com o homem comum provoca uma corrida às fontes do cristianismo primitivo.

E isso é tudo que o Basurko faz no seu ótimo livro (na verdade uma tese de doutorado publicada em livro). Ele passa o pente fino em toda a literatura patrística, com enfoque privilegiado em Agostinho e algum acento mais forte em Crisóstomo, e encontra ali todas as recomendações e reflexões sobre os usos do canto na vida da igreja. Com isso, o Basurko consegue fazer um panorama do canto litúrgico entre os primeiros cristãos a partir da única documentação existente.

Não é possível fazer muito mais pelo fato de que simplesmente não existe documentação musical propriamente dita (não existiam partituras) – e poucos documentos sobreviveram. O testemunho dos homens que formaram a ortodoxia da fé que se institucionalizaria pelos próximos milênios acaba sendo uma fonte rica para conhecer as práticas musicais dos primeiros 4 séculos de cristianismo.

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São pistas que eu estou seguindo por que preciso conversar sobre isso nas minhas aulas. E são os ecos de uma reflexão que marcou um período muito importante de renovação das tradições cristãs numa época em que não estava dado como se faria a entrada em novos aspectos da modernidade. Nas décadas seguintes ao trabalho de Basurko ou Cullman, a igreja romana e os vários ramos protestantes iriam enfrentar um mergulho nos novos meios de circulação – a indústria fonográfica e, depois, a televisão e a internet. A música cristã nunca mais seria a mesma, e as tentativas de acompanhar as rápidas transformações mantendo alguma ligação com a tradição histórica acabariam sendo tragadas no torvelinho do uso mercantil das canções religiosas.

Para o bem e para o mal, a busca das origens da música cristã ficou mesmo como um olhar idílico para o passado, ao qual era impossível voltar mesmo que como inspiração. Afinal, depois de tantos séculos segurando a participação dos fiéis no culto, alguma hora a represa ia “estourar”.