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Carlos Nadalin, o secretário de alfabetização do MEC e um dos autores da Política Nacional de Alfabetização.
Carlos Nadalin, o secretário de alfabetização do MEC e um dos autores da Política Nacional de Alfabetização.| Foto: Agência Brasil

Prezados leitores, vou interromper minha série de quatro artigos sobre os elementos essenciais de uma política educacional eficaz (currículo, livros didáticos, avaliação e formação docente) para falar de dois temas importantes e a eles relacionados: censura e a Política Nacional de Alfabetização.

De censura, não entendo muito, só acompanho seu recrudescimento nos últimos anos em razão da perda do monopólio das empresas de comunicação longevamente estabelecidas, que nos guiaram pelo cabresto até recentemente. Os geniais colunistas desta Gazeta – que ainda pode ser considerada do Povo – dominam muito, mas muito mais do que eu o conhecimento sobre mecanismos de garantia de regimes democráticos (ou dos que promovem seu esfarelamento sistemático), geopolítica, história da política e dos políticos e assuntos correlatos. Eu apenas entendo de política educacional.

Mas, infelizmente, vivemos para ver uma política educacional elementar ser censurada pelo próprio aparato estatal e midiático criado pelas sociedades que aspiram viver em democracias. A vigilância permanente do estado pela sociedade é uma condição para que aquele cumpra sua função de servir a esta, em oposição a servir-se dela. A imprensa informa fatos à sociedade e dá voz a opinantes - que se espera sejam qualificados - a respeito dos mais variados assuntos. O Legislativo vigia os demais Poderes da República e por eles é vigiado. Entretanto, todos aqui sabemos que essa lógica já foi há muito rompida e nem uma política para alfabetizar crianças pequenas escapou da sanha antidemocrática que acometeu parte da sociedade brasileira e entranhou-se em suas instituições de estado e de representação política.

Julguem vocês próprios. Vamos aos fatos.

A Política Nacional de Alfabetização (PNA) foi criada pelo Decreto 9.765 de 11 de abril de 2019. Entre outras orientações, essa normativa estabelece dois pontos essenciais sobre como deve ser feito o processo de alfabetização nas escolas (e quando não ocorre nelas, nas casas, igrejas, aulas particulares, fonoaudiólogas e similares) do País: 1) apresenta uma lista das etapas cruciais do processo e 2) estabelece que ele deve ser concluído durante o 1º ano do ensino fundamental, ou seja, por volta dos seis anos.

Entretanto, todos aqui sabemos que essa lógica já foi há muito rompida e nem uma política para alfabetizar crianças pequenas escapou da sanha antidemocrática que acometeu parte da sociedade brasileira e entranhou-se em suas instituições de estado e de representação política.

Detalhando. As etapas do processo de alfabetização, exaustivamente identificadas por meios de observação e testagem científica desde o fim dos anos 1990 e corroboradas, desde então, pela Ciência Cognitiva, são: a) consciência fonêmica; b) instrução fônica sistemática; c) fluência em leitura oral; d) desenvolvimento de vocabulário; e) compreensão de textos; e f) produção de escrita. Alguns alunos passam muito rapidamente por algumas delas, outros não. Mas quem os ensina deve estar atento para que cada estágio seja muito bem consolidado antes de passar para o seguinte, ou manter um olho no gato e outro no peixe. Além disso, vencida a fase da fluência leitora, ou seja, quando o aluno lê SOZINHO e DEMONSTRA que entendeu o que leu, o ciclo compreendido pelos itens d), e) e f) acima torna-se permanente, pois estamos sempre aprendendo novas palavras e seus usos, lendo textos cada vez mais complexos e escrevendo idem. Ou deveríamos.

A outra parte da política que precisa ser aceita, pois refutá-la abre as portas para o descalabro do analfabetismo gerado dentro da escola, é que a fluência leitora – a leitura em voz alta, com compreensão, de um texto (inicialmente) curto e simples, próprio para a idade e com cerca de 60 palavras – deve ser atingida até os seis anos. Nossa sociedade vai ter que acatar isso como inegociável. A democracia depende disso. Para que possamos almejar um futuro mais justo, próspero e livre há limites a serem estabelecidos ou, neste caso - como em inúmeros outros -, retomados. Ler aos seis anos é não apenas natural para crianças dos setores mais afluentes de nossa sociedade, mas é o limite pedagógico para a maior parte dos governos em países desenvolvidos, a partir do qual soam todos os alarmes para atrair variadas opções de socorro educacional e até médico.

Mais um item de uma política de alfabetização que precisa ser entendido de uma vez por todas pelos brasileiros, quase os últimos da fila a tomar conhecimento desse fato básico, é que, para pessoas – crianças ou adultos – com os processos visuais, auditivos e cerebrais em ordem, atingir a fluência leitora descrita acima não pode demorar mais que seis meses. Se hoje, no Brasil, a frequência à escola é obrigatória e paga pelo estado desde os quatro anos de idade, é inaceitável que uma criança saia do primeiro ano sem saber ler (além de escrever e fazer as quatro operações até a casa das dezenas). Aliás, as etapas a), b) de d) acima são típicas da pré-escola, onde os alunos brincam para aprender e aprendem brincando. Mas aprendem, ou então deveríamos rever o propósito de se empregar tantos recursos em escolas públicas (e até privadas) entre a creche e o primeiro ano. Se for apenas para dar banho, alimentar e soltar no quintal, provavelmente deveriam custar bem menos do que custam hoje.

Agora vamos a outros fatos, de como essa política está sendo censurada pela imprensa e boicotada pelo Legislativo. Vou apenas dar um exemplo de cada, pois o espaço é exíguo e a paciência de vocês também tem seus limites.

Se hoje, no Brasil, a frequência à escola é obrigatória e paga pelo estado desde os quatro anos de idade, é inaceitável que uma criança saia do primeiro ano sem saber ler

A imprensa, principalmente alguns veículos que escolheram o Presidente Bolsonaro como seu arqui-inimigo, criticaram a PNA desde o nascedouro. É justo o fazerem, porque não é seu papel ser assessoria de imprensa de ninguém, apesar de escolherem sê-lo, de acordo com a conveniência. Só que quando a crítica é mal embasada, passa a ser desinformativa. Vejam um exemplo concreto: a única fórmula de narrativa que alguns proeminentes jornalistas que cobrem educação regularmente conseguiram conceber para criticar a política foi a de que era uma política de “método fônico”. Resumidamente, não se trata de um “método” que é fônico, mas de chamar a atenção aos componentes fônicos da alfabetização. São eles que ligam o que a pessoa ouve com o registro de significado que seu cérebro faz e guarda na memória, para poder ler e compreender o que vem escrito em letras e unidades fonéticas. Sem esse componente, não se aprende a ler. Ao dizer aos seus leitores e expectadores que “fônico é ruim” informa-se mal a professores e pais, os mais diretamente envolvidos com o processo. Não é apenas mau jornalismo, é prejudicial às crianças!

Obviamente, a PNA não se faz apenas com o decreto, a lista completa de programas e ações pode ser encontrada aqui e sua implementação já vem apresentando resultados, tendo, em uma avaliação recente, identificado alunos de 1º ano que alcançaram proficiência em leitura de 3º. Uma política de estado competente pode incomodar o mercado de livros didáticos de baixa qualidade ou de escolas low-cost, por exemplo. Imaginem o pessoal do marketing de grandes grupos empresariais de educação vendo o governo entregar de graça um produto muito melhor do que os que os seus clientes são obrigados a comprar. As escolas low-cost por exemplo (solução de que eu gosto muito, desde que sejam de qualidade), passariam a ter como única vantagem competitiva a ausência de greves. O que não é pouco, mas os pais sabem fazer contas.

Segundo exemplo.

Deputados de oposição (todos do mesmo partido – ganha um doce quem adivinhar qual) e representantes de secretários de educação entraram com uma representação junto ao Tribunal de Contas da União (TCU) para derrubar o edital de concorrência para a produção de livros didáticos para a pré-escola, porque estava previsto que o material a ser produzido tivesse como linha condutora atividades de preparação dos alunos para ler, escrever e fazer as quatro operações matemáticas no primeiro ano – ou seja – davam aos alunos de pré-escola, a oportunidade de galgar as etapas elementares de literacia e numeracia, facilitando a finalização do processo no primeiro ano, como fazem seu pares em países desenvolvidos. Perderam, mas gastaram tempo e energia das equipes do Ministério da Educação e recursos preciosos de nossa República depenada. O Acórdão 212/2021-TCU-Plenário, Processo TC 025.932/2020-9 pode ser encontrado no site do TCU, para quem quiser ver como é importante escolher bem seus deputados – a lista de quem iniciou a representação está lá.

Cabe aqui uma explicação. Sabem o tipo de atividade que esses livros, jamais antes oferecidos a essa etapa para escolas públicas por meio do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), continham? Conhecer as letras do alfabeto, desenhar letras e números usando o seu desenho tracejado no papel, ler letras, sílabas e palavras simples, e muita orientação pedagógica para seus docentes. O mesmo (e até melhor – daí seu perigo) que as escolas privadas fazem, ou que se encontra em qualquer livraria ou banca de jornal com os personagens da Disney ou da Galinha Pintadinha. Um crime imperdoável do qual só mesmo o TCU protegeria as crianças: alfabetizar na idade e da forma certas.

Agora pensem: apesar de ser absolutamente normal que, em uma democracia, diferentes grupos da sociedade disputem espaços de poder, os exemplos citados aqui evidenciam uma superrepresentação de grandes interesses econômicos e ideológicos – população não educada faz parte da “revolução” de esquerda – e uma subrepresentação de alunos e suas famílias e do interesse difuso da sociedade em educar as futuras gerações. É o rebalanceamento dessa representação que está em jogo no atual processo eleitoral.

Conteúdo editado por:Jônatas Dias Lima
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