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A atriz Gwyneth Paltrow no 2020 Writers Guild Awards.
A atriz Gwyneth Paltrow no 2020 Writers Guild Awards.| Foto: Amy Sussman/Getty Images North America/AFP

A “otimização do ser”, pelo grau de narcisismo e paranoia que envolve, só agrava nossas angústias. Quem quer comprar uma vela aromatizada que tem o cheiro da vagina de Gwyneth Paltrow? Pelo visto, muita gente: a vela foi lançada pela marca Goop e esgotou rapidamente. Há muitas casas nesse mundo onde os cheiros íntimos de Gwyneth animam vários serões.

Embora, aqui entre nós, a pergunta seja óbvia: como saber que a vela reproduz com exatidão o odor da genitália da atriz? Segundo a descrição (da vela, não da vagina) que a Folha de S.Paulo partilhou, há ali “notas de gerânio, bergamota cítrica e cedro, justapostos com rosa damascena e sementes da flor abelmosco”. É muita coisa para uma vagina só. De duas, uma: ou a vela não é fiel ao modelo, ou a vagina emite uma fragrância nunca antes vista, ou cheirada, na história humana.

São dúvidas legítimas, que tentei esclarecer com a série The Goop Lab, da Netflix. Sem sucesso. Ali, não há velas. Há vaginas, porém, mas já lá vamos. A série procura mostrar as pesquisas mais recentes que o “laboratório” Goop oferece. E, sem surpresas, a comunidade médica já veio alertar para os perigos de várias terapêuticas.

Agora ninguém se intitula “bruxo” ou “alquimista”; hoje, todo mundo é “terapeuta”, mesmo que as terapias sejam indistinguíveis da velha sopa de morcego

É um aviso compreensível, mas redundante: apesar da sua capa de modernidade, a Goop limita-se a adaptar, para os nossos tempos, o mesmo tipo de delírios e patranhas que já faziam sucesso com os nossos antepassados. A diferença é que já ninguém se intitula “bruxo” ou “alquimista”; hoje, todo mundo é “terapeuta”, mesmo que as terapias sejam indistinguíveis da velha sopa de morcego.

Se a série vale para alguma coisa (e vale), é pelo retrato que oferece da classe média alta da Califórnia (e, já agora, de qualquer metrópole ocidental). Se o leitor pensa que os principais problemas do mundo são a fome, a guerra, a pobreza, a desigualdade, o terrorismo, o coronavírus ou as devastações ambientais, nada mais falso. Depois de assistir à série, fiquei a saber que um dos principais problemas é a vergonha que muitas mulheres sentem dos seus lábios vaginais. A maioria os conhece mal. E quem os conhece bem não gosta da assimetria que os define, razão pela qual as cirurgias plásticas da zona erógena têm aumentado de ano para ano.

A mensagem libertadora da Goop é simples e poderosa: mulheres de todo mundo, contemplai! No caso, a variedade infinita de vulvas, de todas as cores e feitios, que é possível observar ao espelho. Quem disse que havia lábios perfeitos?

Mas a série não se limita a desfazer mitos. Também serve para criar alguns. Sabia o leitor que a sua idade cronológica pode não corresponder à idade biológica? Sim, podemos ter 43 anos no passaporte. Mas o sangue, devido a todo o lixo que comemos e bebemos, pode subir a fasquia para 46 (ou 56, no meu caso). Nada que uma dieta da Goop não resolva. Por dieta, entenda: passar uma fome atroz, digna da Etiópia no tempo do ditador Mengistu, e sobreviver por milagre. Depois dessa experiência anoréxica, podemos ter 43 no passaporte; mas o sangue indica 40, talvez 39. Não é maravilhoso?

Se vivermos como Mahatma Gandhi, podemos ter mais três anos de vida, embora eu talvez preferisse, nessas circunstâncias, um destino semelhante ao do próprio Gandhi. Aliás, não apenas eu. Quase todos os participantes do The Goop Lab parecem mendigar por um fim indolor e rápido. Nas palavras da nossa Gwyneth, a “otimização do ser” significa aproveitar a vida ao máximo, em busca do bem-estar.

As infelicidades da vida não são uma doença. São parte do que somos e, em certos casos, elemento necessário para crescer e formar um caráter

Mas essa alegria e esse fulgor estão ausentes da série. Nos seis episódios, tudo que vemos é um cortejo de vidas infelizes que procuram desesperadamente uma solução milagrosa para as respectivas existências. Essa solução pode estar em banhos de gelo – ou em sessões de cogumelos mágicos. Na imposição de mãos – ou no diálogo com os mortos. Na reconciliação existencial com a vulva – ou na simples inanição para enganar a velhice. Fatalmente, em nenhum momento da série é comunicada a dupla verdade da nossa condição.

Para começar, as infelicidades da vida não são uma doença, exceto para quem as vê como doença. Pelo contrário: são parte do que somos e, em certos casos, elemento necessário para crescer e formar um caráter. Para acabar, a “otimização do ser”, pelo grau de narcisismo e paranoia que envolve, só agrava essa angústia de base.

A psicanálise, dizia o dr. Sigmund, procura resgatar o paciente da miséria neurótica rumo à infelicidade banal. Com as receitas da dra. Gwyneth, o caminho é o inverso. Mas, ao menos, há uma vela aromatizada para nos acompanhar.

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