Detalhe de Fazendeiro no dentista, de Johann Liss.| Foto: Wikimedia Commons/Domínio público
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Dias de sofrimento. Quem diria que os dentes do siso seriam a minha perdição? Arranquei um. Outro será arrancado na próxima semana. E eu, deitado no sofá com gelo sobre o rosto, suspiro por dias melhores. Os dias do futuro.

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Especialistas vários afirmam que dentes do siso são coisa do passado. Por razões evolutivas, há muitos seres humanos que já nascem sem os ditos. Culpa de quem? Da alimentação. Quando era preciso triturar os alimentos com ferocidade cavernícola, os dentes do siso eram úteis. Mas, nos últimos anos, nas últimas décadas, até os adultos passaram a deglutir comida para bebês. Pizzas, hambúrgueres. Risotos. Batidos.

Se a coisa continua, não é de excluir que, lá para o século 22, os seres humanos tenham cabeças gigantescas e bocas ridiculamente pequenas. Onde é que eu já vi isso – figuras com cabeçorras imensas que falam por um orifício minúsculo? Exato: nos filmes de ficção científica. Quem diria que os extraterrestres seriamos nós?

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Um dos sintomas da Covid-19 está na perda do olfato e do paladar. Será que os fãs de comida de avião estão infectados pelo famoso bicho e não sabem?

Mas falando ainda em comida para bebês: a CNN apresentou uma reportagem de fazer cair os queixos (ou os dentes) a qualquer um. No meio da crise, parece que as companhias aéreas tentam se recuperar do prejuízo vendendo cá em baixo aqueles petiscos que se servem a 40 mil pés de altitude. Um dos melhores exemplos é a Finnair, da Finlândia, que tem vendido nos mercados do país as suas refeições de business class.

Apesar dos preços (elevados), há clientes que desejam participar na experiência. A única diferença entre as rações que se consomem lá em cima e as versões que se vendem cá em baixo está na quantidade de sal: em terra, não é preciso exagerar no tempero porque o paladar humano não está tão brutalizado. Isso, claro, se a expressão “paladar humano” se aplicar com o mesmo rigor à comida de avião.

O que me leva a pensar: um dos sintomas da Covid-19 está na perda do olfato e do paladar. Será que os fãs desse tipo de comida estão infectados pelo famoso bicho e não sabem? Eis uma ideia que as autoridades sanitárias poderiam cogitar: servir comida de avião finlandesa à população em geral. Quem gostasse ficava imediatamente em isolamento profilático.

Mas divago. Porque há coisas mais graves nesse mundo do que comida finlandesa, em geral, e comida de avião finlandesa, em particular. Que dizer do senador brasileiro que, alegadamente, escondeu dinheiro entre as nádegas? O escândalo chegou a Portugal e os patrícios não estão espantados: regularmente, aparecem notícias sobre altas figuras da política brasileira que tentam enganar as autoridades com dinheiro na cueca. Não sei se é tradição nacional, mas vejo aqui um padrão: quando há policiais por perto, o primeiro instinto do acossado é esconder as notas nas partes íntimas.

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Do ponto de vista antropológico, isso é revelador. Usando a minha imaginação de Lévi-Strauss, diria que esse instinto vou-esconder-na-cueca é expressão de uma “masculinidade tóxica” bastante entranhada no Brasil. É como se o sujeito pensasse: “Nenhum homem a sério apalpa a genitália de outro homem”. Que a Polícia Federal desmonte esses mitos reacionários, indo direto ao assunto, mostra uma modernidade que eu não esperava.

Aliás, nos meus momentos de ociosidade (ou de sofrimento, como agora), imagino qual será a reação do suspeito quando as notas são encontradas. “Senhor delegado, não sei como isso apareceu aí”? Inverossímil, tenta outra: “Senhor delegado, com essa história do corona, o papel higiênico sumiu”? É possível: toda a gente tem o direito à não autoincriminação.

Sou um homem de sorte: nem dinheiro na cueca nem comida finlandesa de avião. Só dentes do siso apodrecendo

Embora, aqui entre nós, eu me incriminasse na hora e até tentasse uma espécie de delação premiada: “Eu conto tudo, entrego todo mundo, mas não diga onde achou o dinheiro, pelo amor de Deus”. Pois é, a minha “masculinidade tóxica” também não se recomenda.

Nem a tóxica, nem a normal: a extração de dois dentes me reduziu a um gemido só. Mas eu deveria agradecer a Santa Apolônia, padroeira dos sofredores de dentes, por habitar o século 21. A história da odontologia, pelo menos até ao século 18, foi um exclusivo de barbeiros, que até tinham promoções para quem quisesse fazer barba, cabelo e dentição. Todos com a mesma lâmina, presumo, porque a septicemia era coisa de frouxos. Esses eram os tratamentos de luxo, atenção. Quando não havia um barbeiro por perto, avançava o ferreiro com o martelo e o espeto nas mãos.

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Pensando melhor, sou um homem de sorte: nem dinheiro na cueca nem comida finlandesa de avião. Só dentes do siso apodrecendo – e, como na música, um momentâneo lapso da razão.