O crítico literário George Steiner, falecido em 3 de fevereiro de 2020.| Foto: Bertrand Guay/AFP
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Será que George Steiner era “um completo charlatão”? O jornal Daily Telegraph dedicou um obituário ao escritor, que morreu no dia 3 de fevereiro. É um texto jocoso, cruel, displicente. E, a certa altura, o jornalista cita um acadêmico judeu (sem o identificar) que classificou Steiner nesses termos. O acadêmico judeu, para que conste, era Isaiah Berlin, um pensador importante que, malgré tout, sempre teve alguns probleminhas de caráter.

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Não sei se Steiner foi “um completo charlatão” em assuntos que não domino. Mas se Isaiah Berlin formulou questões de natureza política que entretanto assumi como minhas (“por que motivo a utopia não funciona?”; “a liberdade deve ter sempre prioridade sobre os demais valores?”; “em que sentido o pluralismo se distingue do relativismo?”), o mesmo posso afirmar sobre George Steiner. Para ser mais preciso, existem duas questões que, depois dele, passaram a pairar sobre a minha cabeça agitada.

A primeira é conhecida: será que a alta cultura é uma barreira contra a barbárie? A tradição racionalista do Ocidente afirma que sim: conhecimento é virtude. O que significa que o mal provém da ignorância. George Steiner nunca aceitou esse otimismo socrático-platônico. Como repetidamente afirmou, um homem pode ler Goethe ou saborear trechos de Schubert – e, no dia seguinte, em Auschwitz, destruir seres humanos sem o mínimo abalo da consciência. Pior ainda: como explicar que as instituições tradicionais nas quais repousa a alta cultura – as universidades, as artes, as editoras – tenham sido igualmente incapazes de evitar as catástrofes do século 20? Como explicar que elas tenham marchado voluntariamente com os carrascos?

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As meditações humanistas (e anti-humanistas) de Steiner são uma faca cravada na garganta dos otimistas culturais

George Steiner nunca nos deu uma resposta satisfatória para essas perplexidades. Mais: em doloroso paradoxo, Steiner era capaz de depositar toda a sua fé e esperança nas virtudes da alta cultura ao mesmo tempo em que admitia as possibilidades de desumanização que a alta cultura encerra. Em teoria, é importante ler Tolstói ou Dostoiévski. Mas até que ponto o contato com formas superiores de existência não nos torna imunes às formas mais banais de realidade ou sofrimento?

Como escreveu Steiner em No Castelo do Barba Azul, a loucura e a morte podem ser preferíveis ao tédio da vida burguesa. Raskólnikov, o personagem central de Crime e Castigo, escreve um ensaio sobre Napoleão – e, a seguir, “sai para matar a velha”.

As meditações humanistas (e anti-humanistas) de Steiner são uma faca cravada na garganta dos otimistas culturais. Mas existe uma faca maior: os judeus. Eles são a faca cravada na garganta da humanidade.

Na versão tradicional, o antissemitismo ocidental, pelo menos até inícios do século 20 e ao veneno da pseudociência rácica, sempre bebeu na fonte bíblica. Os judeus eram os assassinos de Deus, na figura do Seu filho; as perseguições e os pogroms antijudaicos partiam desse “crime” primordial. Steiner discordava. O verdadeiro “crime” dos judeus não foi terem matado Deus; foi terem-no criado. Como é possível criar um Deus onipotente, onipresente, vigilante, exigente, castigador, quando os homens apenas desejam “voltar ao estábulo” para se espojarem “no seu politeísmo pagão, orgânico e permissivo”?

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Quando Hitler afirmava que a consciência é uma invenção judaica, ele sabia do que falava. E falava com ódio, muito ódio, contra aqueles que tinham cometido semelhante afronta. O ódio aos judeus, em Steiner, começa por ser um cansaço com os judeus (“judenmüde”), um cansaço com as expectativas elevadas que repousam sobre matéria tão animalesca. Entre Nietzsche (“torna-te aquilo que és”) e Deus (“torna-te em algo melhor do que aquilo que és”), o bárbaro não hesita.

Um completo charlatão? Direi apenas isso: se Steiner é um charlatão, Isaiah Berlin também é. Porque, ironicamente, o melhor desses dois pensadores judeus é bastante semelhante: um retrato contraditório, complexo, agônico da natureza humana. Mas também um convite para sermos decentes – e, apesar de tudo, para cultivarmos a esperança melancólica dos céticos.

PS: Uma das melhores introduções ao pensamento de Steiner encontra-se no livro George Steiner: À Luz de Si Mesmo (Perspectiva), no qual é entrevistado por Ramin Jahanbegloo, que tem outro grande livro de entrevistas. Com Isaiah Berlin.