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Putin deposita flores no Túmulo do Soldado Desconhecido, no Kremlin, durante as comemorações pelo Dia da Vitória em 9 de maio de 2022.
Putin deposita flores no Túmulo do Soldado Desconhecido, no Kremlin, durante as comemorações pelo Dia da Vitória em 9 de maio de 2022.| Foto: EFE/EPA/Anton Novoderezhkin/Kremlin/Sputnik

Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, os ocidentais abriram a boca de espanto. Guerra? Isso não tinha sido abolido em finais do século 20? Entendo o pasmo. Mas ele se explica pela situação de anormalidade em que o Ocidente viveu depois da queda do Muro de Berlim.

Durante toda a história, a rivalidade entre potências era um fato natural. Nossos antepassados jamais alimentaram a ideia infantil de que as guerras tinham sido abolidas. Como lembrava Churchill, a história da humanidade era a história dos seus massacres. Isso mudou depois de 1990. A União Soviética desapareceu. A nova Rússia, quebrada e desmoralizada, já não era uma ameaça. Mesmo a China, se pensarmos bem, ainda estava combalida depois dos protestos de Tiananmen. O Ocidente confundiu uma pausa extraordinária com o fim da própria história. Essa, pelo menos, era a tese de Robert Kagan em O Regresso da História e o Fim dos Sonhos. O ensaio foi publicado em 2008, lido por essa altura – e relido à luz do presente.

A autocracia foi sempre a regra, não a exceção. E nada garantia que metade do globo não preferisse soluções autocráticas, por mais que isso ofendesse as nossas cabeças iluminadas

Engraçado como certos autores que subestimamos no passado acabam regressando com uma força e sabedoria que nos envergonham. Kagan é um caso: em inícios do século 21, o seu pessimismo realista me parecia exagerado. Hoje, depois da invasão russa da Ucrânia, é difícil não concordar com as suas sentenças lúcidas e proféticas.

A primeira delas é filosófica: os herdeiros do Iluminismo sempre acreditaram que a história só tem um sentido – um mundo cada vez mais livre e pacífico, onde os povos trocam ideias e mercadorias sem ceder aos instintos primitivos do nacionalismo e do ressentimento. O fim da Guerra Fria parecia ser a materialização desse historicismo: a democracia triunfava sobre propostas rivais. Até a China, integrada no comércio mundial, acabaria por criar a sua classe média e por abrir as comportas ao liberalismo político. A Rússia, essa, já fazia parte do clube. Ou quase.

Era uma crença que ignorava a própria experiência histórica: a autocracia foi sempre a regra, não a exceção. E nada garantia que metade do globo não preferisse soluções autocráticas, por mais que isso ofendesse as nossas cabeças iluminadas. Como sempre aconteceu, não é apenas a democracia que exerce o seu charme sobre a espécie Homo sapiens; a autocracia também tem os seus fãs. Como lembrava Kagan, o fascismo esteve em voga na América Latina nas décadas de 1930 e 1940; o comunismo conquistou o Terceiro Mundo nas décadas de 1970 e 1980.

Nada está determinado, eis o ponto do autor. O retorno da rivalidade entre democracias e autocracias pode ser incompreensível para os europeus pós-modernos (e pós-nacionalistas), que ainda têm na memória as duas guerras destrutivas que ofereceram ao mundo. Mas essa rivalidade não seria incompreensível para um diplomata do século 19, que nunca teve ilusões sobre os limites do direito e das instituições internacionais e que sempre entendeu o fascínio da conquista e da força bruta.

De certa forma, Vladimir Putin pertence ao século 19. Ou talvez ao século 18, como ele próprio fez questão de ilustrar recentemente: Pedro, o Grande reconquistou território para a Rússia nas guerras contra a Suécia. Ele, Putin, está apenas a seguir os passos do seu antecessor. Onde está o drama?

No primeiro round, as democracias triunfaram sobre as autocracias. E no segundo?

Em 2008, a análise de Kagan parecia demasiado crua e dissonante. Até para a Otan, que na sua reunião de 2010 afirmava perante Dmitri Medvedev, então presidente da Rússia, que era do interesse da aliança uma parceria estratégica com Moscou. Doze anos depois, essa reunião em Lisboa parece coisa de outro planeta. Basta ler a nova doutrina da Otan, apresentada em Madri, que considera a Rússia “a ameaça mais significativa e direta à segurança dos aliados e à paz e estabilidade na região euro-atlântica”, sem esquecer o “desafio sistêmico” que a China representa.

Por outras palavras: tal como Robert Kagan antecipou, a história regressa – e, com ela, regressam os velhos conflitos entre potências. No primeiro round, as democracias liberais triunfaram sobre as autocracias. Como vai ser no segundo? Nossos filhos saberão responder melhor a essa pergunta.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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