Cena do novo especial de Jerry Seinfeld na Netflix, “23 Hours to Kill”| Foto: Divulgação / Netflix
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Tempos atrás, tentei convencer um jovem membro da família a assistir a "Seinfeld". Ele, moço universitário, especializado em todas as séries do momento, nunca tinha ouvido falar. Saltei da cadeira. Como, nunca?

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Depois, mais calmo, ordenei-lhe que cumprisse o seu dever.

Ele cumpriu. Não ficou cliente. Para começar, não entendeu o propósito da série. Aquilo era sobre nada, desculpou-se. Apenas quatro amigos jogando tempo fora.

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Exatamente, retorqui. "Seinfeld" é essa ave rara: ilumina um pormenor anódino da existência humana e depois, sob uma lente neurótica, vai aumentando, aumentando, até tomar conta de tudo.

Desiludido, tolerei a afronta. Disse-lhe, basicamente, para nunca mais me aparecer na frente. Estava deserdado. Fui cruel?

Sei agora que fui. De volta a casa, espreitei o especial da Netflix com Jerry Seinfeld em palco, "23 Hours to Kill". Desilusão?

Longe disso. Aos 65 anos (já?), Seinfeld continua a cumprir o mesmo programa, dessa vez com um auditório cheio (nostalgia; pessoas juntas e sem máscara; quando teremos outra experiência assim?).

E a piada das piadas está na capacidade única de elevar o ordinário ao extraordinário. Só um gênio seria capaz de lembrar essa verdade aparentemente banal de que a pior coisa que pode acontecer a alguém é morrer fazendo o que gosta. Não é preferível cair para o lado quando estamos fazendo o que detestamos?

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Usurpando um conhecido título de Martin Amis, o stand-up de Seinfeld é uma guerra permanente contra o clichê. E a vida é uma sucessão absurda deles.

Mas ao mesmo tempo que aplaudia, havia no exercício uma sensação de estranheza radical. Como se Jerry Seinfeld viesse de um outro planeta, falando uma outra linguagem.

Ele não mudou. O mundo mudou e até eu, resistente empedernido, me deixei levar pela torrente.

Como me dizia em tempos um amigo letrado, "Seinfeld" reinou entre 1989 e 1998, aquela década em que a história meteu férias. O Muro tinha caído. As Torres Gêmeas ainda não.

O diletantismo de "Seinfeld" expressava essa "doçura da vida" de que falava Talleyrand sobre a França pré-revolucionária: era possível virar as costas aos grandes problemas e perder tempo com os pequenos, os risíveis, os microscópicos. Que luxo.

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Mas então veio o 11 de Setembro. E, com ele, as aventuras trágicas do Afeganistão e do Iraque.

O terrorismo criou metástases. A crise financeira também. Apareceram os populistas. Apareceram as guerrilhas culturais que inundaram tudo de irracionalismo, ódio e gritaria.

E, agora, o bicho. E as consequências insondáveis do bicho.

É a natureza apolítica, e até antipolítica, de "Seinfeld" que me deslumbra, como se fosse possível realizar a velha máxima da arte pela arte.

É essa mesma natureza que uma cabeça saturada com o ruído das batalhas não suporta. Como se fosse uma afronta, nesse século acelerado e urgente, alguém perder tempo com quatro amigos que perdem tempo.

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Tudo se politizou: as conversas, as famílias, as amizades. Até a ficção. Sobretudo a ficção. De tal forma que a primeira pergunta que fazemos sobre as obras de arte não é se elas prestam. É saber qual é a mensagem, esperando que seja a mensagem politicamente correta.

Com "Seinfeld", não havia mensagem e essa era a mensagem. Mas se fosse filmado hoje, tenho a certeza que algum produtor idiota exigiria saber qual dos personagens votaria Biden (ou Trump). E se algum deles era negro, trans, anão ou extraterrestre. Assim vai o mundo.

E assim vai a família: para enterrar o machado de guerra, o meu herege emprestou-me a melhor série de TV que viu nos últimos anos. "The Handmaid's Tale", eis o título.

Vou a meio, acompanhando o folhetim com razoável interesse. Confirma-se: tecnicamente, tudo nos conformes. E Elisabeth Moss, como June/Offred, é o grande talento da sua geração.

Mas como não ver que a saga da aia é uma espécie de distopia feminista, versão sadomasô, onde todos os medos estão reunidos?

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O patriarcado opressor. A liberdade feminina como ameaça. A religião como fonte de obscurantismo. A "cultura do estupro" como normalidade. São tantos os clichês que uma pessoa suspira por um momento de pausa.

Um momento de nada.