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Cena de “Triângulo da Tristeza”, filme de Ruben Östlund vencedor da Palma de Ouro em Cannes em 2022.
Cena de “Triângulo da Tristeza”, filme de Ruben Östlund vencedor da Palma de Ouro em Cannes em 2022.| Foto: Divulgação

Estamos em 2023. Alguém ainda acredita que o motor da história é uma oposição violenta entre a burguesia capitalista e o proletariado? As universidades, talvez, sobretudo as que permanecem encerradas na caverna da Guerra Fria. E a cultura pop dominante, que ganha aplausos e prêmios com seus clichês ideológicos. Triângulo da Tristeza é um caso: deu a segunda Palma de Ouro em Cannes ao sueco Ruben Östlund, depois de O Quadrado. Mas, quando assistimos ao filme, bocejamos nos primeiros 30 minutos com o esquematismo infantil do projeto.

Os ricos são grotescos, diz Östlund; são “decadentes”, como diria um bom bolchevique, algures em 1920. Os pobres, esses, só servem para limpar as sujidades que eles produzem, literalmente falando. Essa distopia capitalista atinge seu zênite num iate de luxo. Dentro do barco, mandam os ricos, com suas falsas proclamações igualitárias. Fora do barco, e de volta ao estado da natureza depois de uma explosão a bordo, os ricos são imprestáveis. São os pobres que, habituados à luta pela sobrevivência, mantêm a ordem e a vida.

Triângulo da Tristeza, filme de Ruben Östlund, não é A Revolução dos Bichos

Fato: Östlund ainda ensaia uma visão mais complexa dessa dicotomia, ao sugerir que os humilhados e ofendidos podem ser tão perversos como os seus opressores. Mas Östlund não é George Orwell, nem Triângulo da Tristeza é A Revolução dos Bichos. A elipse final é apenas o comprovativo da sua covardia moral e artística.

Mas o problema de Triângulo da Tristeza não está apenas no clichê ideológico de quem ficou no século 19. Está na ignorância de Östlund sobre as matérias que procura ridicularizar – o pecado capital de qualquer satirista. Deixemos de lado o erro mais óbvio: se Östlund pensa que os ricos fazem férias em iates fajutos daqueles, ele deveria pesquisar um pouco mais. Os ricos são donos de iates, não clientes.

Mas Östlund erra ao não entender que a velha guerra de classes, se algum dia existiu, não existe mais. O que existe é uma nova guerra de classes na qual ele, Östlund, está sentado no lugar dos “exploradores”. Essa, pelo menos, é a tese de Michael Lind, autor de The New Class War, em entrevista à revista New Statesman. A grande oposição política, hoje, não é entre esquerda e direita, muito menos entre burguesia e proletariado. É entre a “elite gerencial” – managerial elite, como diria James Burnham – e a classe trabalhadora.

A primeira é usualmente branca, apesar de falar constantemente de diversidade; tem um diploma universitário para mostrar (ou vários); vive em hub cities, como Nova York, Londres, Paris; e faz parte da nomenklatura (finanças, internet, mídia, artes, universidades etc.). A segunda é racialmente diversa; tem pouca instrução formal; vive nos subúrbios; e tem opiniões e interesses que a nomenklatura considera bregas ou reacionários, sobretudo em matérias sociais e de costumes.

O abismo entre esses dois mundos, que se insultam mutuamente com a expressão “essa gente”, é hoje tão profundo como o abismo que existia entre a aristocracia e a plebe ou entre a plutocracia e os servos. Mas a desigualdade é a mesma: em riqueza, oportunidades, influência e status social.

A velha guerra de classes, se algum dia existiu, não existe mais. O que existe é uma nova guerra de classes na qual ele, Östlund, está sentado no lugar dos “exploradores”

Sem surpresas, esse abismo tende a produzir aberrações políticas: populistas demagógicos, por exemplo, que se aproveitam do desespero ou do ressentimento das massas; ou, no outro extremo, uma oligarquia tecnocrática. O que não produz é uma sociedade pluralista, onde diferentes comunidades culturais, igrejas, sindicatos, partidos – os “corpos intermediários” de que falava Tocqueville, sem os quais o despotismo triunfa –, têm um lugar e uma voz.

No filme de Ruben Östlund, os seus ricos parecem caricaturas de um romance de Dickens: grandes magnatas que fizeram fortuna em indústrias pesadas, como os fertilizantes ou o armamento. Duplo erro. Primeiro, porque os ricos do nosso tempo já não estão nas fábricas e nos campos; também fazem parte da “elite gerencial”. E, depois, porque essa nova elite olharia com horror para gente tão primitiva e cafona.

Ironicamente, os ricos de Ruben Östlund estão no mesmo patamar de desprezo social que a classe trabalhadora. Para quando um filme satírico sobre a nova luta de classes? Talvez nunca. O sarcasmo que Östlund gosta de despejar sobre velhos espantalhos seria uma traição de classe se aplicado dentro de casa.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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