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Jocelaine Santos

Jocelaine Santos

Liberdade de expressão é condição necessária para a democracia

Sentença

Jovem Pan condenada: só no Brasil imprensa livre é ameaça à democracia

(Foto: Jovem Pan/Divulgação)

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No mundo do contrário, o certo é errado e o errado é que é o certo. No Brasil de hoje, é essa lógica distorcida que parece imperar. Um exemplo é a forma como premissas fundamentais têm sido solapadas para dar lugar a abusos e arbitrariedades do Judiciário nacional. Vozes são caladas na canetada, sejam de pessoas ou até de veículos de comunicação. Vejamos o caso recente da condenação da Jovem Pan ao pagamento de R$ 1,5 milhão por – e, por favor, prestem bem atenção ao “crime” – supostamente promover desinformação e veicular conteúdos que colocariam em risco a democracia.

Nunca antes nesse país – e nem em qualquer outro – imprensa livre foi tratada como ameaça à democracia: imprensa livre é, isto sim, ameaça a regimes autoritários e ditaduras. São os ditadores de plantão, independentemente de serem de esquerda ou de direita, que gostam de impedir que a imprensa noticie livremente e dê voz a opiniões diversas. Ditadores gostam da imprensa que serve apenas para repercutir as versões oficiais, incensar o governo, adular governantes e repetir o que diz a cartilha dos poderosos de plantão. Assista a uma TV estatal qualquer e verá um pequeno exemplo disso.

Na lista de atrocidades cometidas por ditadores de todo o mundo contra a imprensa, o caso da emissora Jovem Pan, condenada por promover desinformação e colocar a democracia em risco, poderia ser facilmente incluído

Ditadores gostam de fechar jornais e prender jornalistas e exemplos não faltam. Quer ver? Vejam algumas notícias que encontrei: Jornalista é preso na Venezuela após denunciar existência de um buraco em uma avenida – Nicolás Maduro não gosta nada que apontem a miséria de seu governo. Do outro lado do mundo, é Vladimir Putin quem persegue a imprensa: Rússia condena jornalistas a oito anos de prisão por notícias sobre massacre de Bucha ou ainda Justiça russa condena jornalista ucraniano a 14 anos de prisão por “ódio político” contra Putin.

O regime da China, que nossos ministros do Supremo dizem admirar, é outro que não simpatiza em nada com a imprensa livre: Jornalista detida por denunciar surto de Covid na China pega mais quatro anos de prisão. Em Cuba não é diferente: Cuba prende jornalista crítico do regime comunista. E também na Nicarágua: Ditadura da Nicarágua prende jornalista por reclamar da inflação.

O que esses países têm em comum? Em todos eles não há mais democracia e o poder é exercido de forma autoritária. “Ah, mas tem eleição na Venezuela.” Pode até ter, mas não vale nada: os resultados são tão confiáveis quanto uma nota de 300 reais. O sistema eleitoral, totalmente instrumentalizado pelo governo Maduro, não só favorece o governo como garante que nenhuma oposição vingue.

Nessa lista de atrocidades cometidas por ditadores de todo o mundo contra a imprensa – e só mencionei algumas poucas – caberia incluir facilmente o caso da emissora Jovem Pan, condenada por promover desinformação e colocar a democracia em risco. Para quem não lembra do caso, um resumo: durante o trágico ano eleitoral de 2022 – e que pode ganhar uma versão 2.0 em 2026 – a Jovem Pan, assim como fizeram a maioria das emissoras de rádio e TV, exibiu programas que tratavam do tema eleições, com a participação de analistas políticos, que expuseram suas opiniões sobre o processo eleitoral brasileiro, um dos únicos que usa urna eletrônica no mundo, e sobre a atuação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Críticas a ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), como Edson Fachin, Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso (agora ex-ministro), muitas vezes associadas a ativismo judicial, também foram feitas pelos comentaristas.

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Nada disso é crime: opinar e criticar um sistema eleitoral ou a atuação de um órgão de Justiça ou de seus ministros faz parte do direito de expressão e opinião. No caso da imprensa, é mais que bem-vindo dar espaço para opiniões diversas sobre um tema tão relevante quanto as eleições de um país. Criminalizar uma emissora porque deu espaço para que comentaristas políticos dessem sua opinião sobre as eleições é algo que não estranharíamos na China, na Rússia ou na Venezuela. Nunca poderia acontecer em qualquer país que se diga democrático.

Mas aconteceu no Brasil, e foi recebido com tal naturalidade que assusta. O Ministério Público Federal (MPF) e a União acusaram a emissora de promover desinformação e veicular conteúdos que colocariam em risco a democracia. O MPF, aliás, pediu a cassação da emissora – simples assim. Em decisão ainda em primeira instância, ou seja, que ainda poderá ser modificada, a Justiça Federal condenou a Jovem Pan a pagar mais de R$ 1 milhão a título de indenização por “danos morais coletivos” – algo que, juridicamente, nem tem cabimento.

O recado desse tipo absurdo de decisão, que criminaliza alguns tipos de opinião, estabelecendo o que pode ou não ser dito – em outras palavras, que censura – e que tem se tornado regra, é claro. Ela cria um precedente em que a crítica a autoridades e ao sistema, algo absolutamente legítimo, pode se tornar um passivo financeiro arriscado. Na prática, o risco de receber uma punição pode inibir o trabalho jornalístico e gerar um ambiente de autocensura. Às vésperas de um ano eleitoral que deverá ser tão ou mais tenso que 2022, a perspectiva é sombria.

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