A cidade portuária de Odesa às escuras: apagões se tornaram rotina em toda a Ucrânia com as chuvas de mísseis russos| Foto: Luis Kawaguti
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Desde o dia 10 de outubro, seguidas chuvas de mísseis - ao menos sete - destruíram aproximadamente metade da rede elétrica da Ucrânia e deixaram mais de 10 milhões de pessoas às escuras - incluindo este colunista. Com a aproximação do inverno, que começa em menos de um mês, a falta de energia pode provocar muitas mortes pelo frio.

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Na última semana, o Kremlin negou ter bombardeado deliberadamente a estrutura elétrica do país vizinho. Afirmou que os alvos eram estruturas de comando e controle militares.

Mas, na prática, o objetivo aparente de Moscou é sabotar o moral da população civil. Em tese, o povo se voltaria contra o governo e exigiria um acordo de paz com a Rússia - Moscou precisa desesperadamente de uma trégua para reorganizar suas forças e tentar manter ao menos parte do território anexado da Ucrânia.

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Mas o que observo em minhas reportagens pelas cidades da frente de batalha sul - Kherson, Mykolaiv - e também na região portuária de Odesa é que o Kremlin tem obtido o resultado oposto: a população está mais resoluta em resistir.

Na recém libertada Kherson, por exemplo, ouvi inúmeras vezes de moradores que a liberdade compensa a falta de luz, água e aquecimento.

Estação ferroviária de Odesa sem luz: apesar das dificuldades e da proximidade do inverno, a população ucraniana resiste. Foto: Luis Kawaguti

Os apagões já são parte do cotidiano dos ucranianos, não só nas cidades próximas da frente de batalha. Em praticamente todos os núcleos urbanos da Ucrânia hoje é comum ter luz, telefone e internet só por algumas horas por dia.

Experimentei isso de forma mais intensa na última terça-feira (22), quando Odesa, a cidade onde estou baseado, sofreu o pior golpe contra sua rede elétrica. O mesmo ocorreu em Lviv, Zhytomyr, na capital Kyiv e em inúmeras regiões da Ucrânia. As quatro centrais nucleares do país foram desconectadas da rede, algo que não ocorria há 40 anos.

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Com apagões, população correu aos mercados no meio da noite para comprar água e mantimentos. Foto: Luis Kawaguti

Antes, os blecautes não duravam mais de um dia e apenas alguns bairros ficavam sem luz simultaneamente. Nesta semana, o apagão foi completo e durou três dias. Pessoas correram para supermercados para comprar água e mantimentos, houve falta de gasolina, as comunicações caíram e o trânsito ficou caótico.

O leitor deve ter uma vaga lembrança do que é andar nas ruas à noite tendo que usar lanternas. O Brasil passou pela crise do apagão entre 2001 e 2002. Não é uma experiência agradável.

Em Mykolaiv, testemunhei o que é não ter luz e também não ter água. As redes de abastecimento que levavam água do rio Dnipro para a cidade foram bombardeadas há meses. A água, quando há fornecimento, é salobra e imprópria para o consumo. As pessoas se habituaram a guardá-la em garrafas plásticas, praticamente apenas para higienizar os banheiros.

Fora isso, instalações médicas também estão sendo deliberadamente bombardeadas - foram mais de 700 ataques desde o início da invasão em 24 de fevereiro, segundo a Organização Mundial da Saúde. Estive em algumas que ainda estão funcionando e a falta de médicos e enfermeiros é evidente.

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Também entrevistei cidadãos de Kherson que disseram ter visto dezenas de pessoas do lado de fora de hospitais aguardando atendimento - algumas delas estavam gravemente feridas. Eu testemunhei multidões implorando por remédios para ambulâncias militares.

Ou seja, sem dúvida, a vida ficou muito mais difícil. E vai piorar com a queda das temperaturas.

Mas usar ataques aéreos para destruir a infraestrutura civil de um país, infelizmente, não é uma novidade nas guerras. A prática começou já na Primeira Guerra, quando a Alemanha mandou primeiro zepelins e balões carregados de bombas para atacar a Grã-Bretanha e depois aviões biplanos.

Na Segunda Guerra, a estratégia foi intensificada. Prevalecia a ideia de que o poder aéreo e os bombardeios de alvos civis eram uma forma prática e barata de se tentar submeter o inimigo e forçar sua rendição.

Na prática, é possível atacar a população civil de forma direta - bombardeando áreas residenciais - ou indireta, por meio da destruição da infraestrutura elétrica, redes de abastecimento de água e transportes (a Rússia usa as duas formas na Ucrânia).

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Tudo isso torna a vida da população mais sofrida, mas não gera revoltas populares nem abala a resistência dos países atacados.

Foi assim nas guerras da Coreia, do Vietnã e na primeira invasão do Iraque: os Estados Unidos bombardearam e destruíram mais de 90% das redes elétricas de seus inimigos. Mas os governos não se renderam por causa disso. Tanto que na segunda guerra do Iraque, a rede elétrica foi deixada quase intacta.

Por outro lado, esse tipo de ataque ajuda a destruir a economia do país inimigo. Vejo o exemplo mais simples: na cidade de Odesa, há centenas de lojas fechadas por causa da falta de luz. Algumas operam com geradores e outras à base de velas. As vendas são registradas à mão em caderninhos, sem os sistemas de computadores hoje tão comuns até aos pequenos negócios.

Mas como um país como a Ucrânia tenta amenizar os efeitos dos ataques à infraestrutura? Vejo duas formas no meu dia a dia: defesas antiaéreas e reparos em uma escala que seria inimaginável em tempos de paz.

A Ucrânia começou a guerra com um sistema de defesa antiaérea baseado em baterias S-300, de projeto soviético. Elas se destinam basicamente à defesa contra aviões bombardeios, mas não são a arma ideal contra mísseis de cruzeiro e pequenos drones.

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Por causa disso, os ucranianos desenvolveram um segundo sistema antiaéreo, destinado principalmente a abater os mísseis russos. Ele integra baterias americanas NASSAMS, alemãs IRIS-T e italianas Asperge. Os drones também são contidos com blindados de defesa antiaérea de curta distância e com mísseis portáteis como os americanos Stinger.

Posso testemunhar o quanto são importantes essas baterias para a manutenção da sanidade mental da população. Quando o alerta de ataque aéreo começa a soar na cidade, é reconfortante saber da existência dessas defesas.

Mas é por isso que os ataques nunca são feitos com um ou dois mísseis. Moscou chegou a lançar 90 mísseis de uma só vez, para saturar a capacidade de defesa antiaérea ucraniana. Invariavelmente, alguns mísseis passam pelo escudo.

Por causa disso, a Ucrânia mantém verdadeiros exércitos de técnicos trabalhando ininterruptamente no conserto de cabos elétricos, vias férreas e tubulações de água. Reparos que eram feitos a cada cinco anos, em média, têm que ser realizados todos os dias.

Mas isso não é suficiente. A rede elétrica básica, por exemplo, levaria em torno de cinco semanas para ser reparada se os ataques parassem agora.

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Faço aqui uma observação sobre guerra contemporânea destinada aos estrategistas brasileiros: se entrássemos em guerra, nosso país praticamente não teria defesas antiaéreas. Possuímos apenas baterias de defesa de curta distância (que os militares chamam de média distância, uma questão de nomenclatura) para proteger tropas e infraestruturas específicas.

A defesa aérea se baseia praticamente nos caças Gripen, que estão sendo adquiridos aos poucos. E o avião de caça não é a melhor forma de se lidar com mísseis de cruzeiro. Tenho visto aqui os esforços muitas vezes infrutíferos de pilotos ucranianos para tentar abater esses mísseis.

Sobre a capacidade das empresas brasileiras de reparar redes elétricas, prefiro nem comentar, pois o leitor tem sua própria experiência.

Mas, voltando à Ucrânia: como medidas emergenciais, o governo está pedindo para que as pessoas que puderem deixem o país durante os meses de inverno. Para apoiar as que ficarem, foram criados 4 mil pontos de “invencibilidade”, ou seja, prédios públicos onde é possível encontrar aquecimento, água, mantimentos e abrigos contra bombardeios.

Ou seja, a combinação dos ataques à infraestrutura com a chegada do inverno será penosa, se não letal para uma boa parte da população. Mas a Ucrânia não vai se render por causa disso.

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Então, por que o presidente Vladimir Putin continua apostando numa estratégia que se mostrou infrutífera em tantas outras guerras do passado?

Uma explicação pode ser a tentativa de criar novas ondas de refugiados para gerar uma pressão migratória maior na Europa. Em tese, isso pode derrubar governos - embora na prática tal tendência não se verifique: os governos da Itália e do Reino Unido foram recentemente substituídos e esses países não deixaram de apoiar a Ucrânia.

Outra resposta possível à pergunta pode ser simples: vingança de um governante autocrata que viu seus planos expansionistas frustrados.

Em ambos os casos, atacar a população civil, direta ou indiretamente, tem um nome: crime de guerra.