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O objetivo da minha reportagem era chegar à chamada “zona zero”, ou seja, à “terra de ninguém”, uma faixa de território entre as linhas de frente do exército russo e do exército ucraniano. Queria ir até lá para mostrar o que estava acontecendo com a população do vilarejo de Kamyanske, que há dias vinha ficando sob o fogo cruzado.

Mas, a caminho do local, a estrada foi bombardeada e o carro em que eu viajava foi atingido por uma granada de artilharia, possivelmente disparada por um obus ou um morteiro pesado. Abandonei o veículo junto com colegas jornalistas e esperamos por mais de uma hora até o bombardeio acabar.

Não nos ferimos, felizmente, mas experimentamos o pavor da população civil ucraniana, submetida diariamente a esse tipo de episódio desde 24 de fevereiro.

A jornada começou nos limites da cidade de Zaporizhzhya, onde os militares ucranianos haviam montado um posto de controle fortificado com barricadas e obstáculos antitanque. Lá, recebi uma carona de dois jornalistas, o espanhol Fran e o ucraniano Koss. Eles iam para o mesmo local, possuíam um carro blindado e gentilmente se ofereceram para me levar com eles.

Em áreas de conflito, as caronas são incentivadas pelos militares e a concorrência entre os jornalistas dá lugar à camaradagem e à solidariedade.

Depois das verificações de documentos e licenças de imprensa pelos militares, iniciamos o caminho pela estrada M18, que liga Zaporizhzhya a Melitopol - uma cidade de porte médio que está nas mãos dos russos desde as primeiras semanas da guerra.

A região de Kamyanske fica a 80 quilômetros de Melitopol e a cerca de 230 quilômetros de Mariupol, onde as últimas forças ucranianas na região resistem na siderúrgica de Azovstal - um complexo industrial de 11 quilômetros quadrados e mais de 20 quilômetros de túneis subterrâneos.

Vilas como a de Kamyanske são a principal rota de passagem para milhares de refugiados que fogem do território ucraniano ocupado pela Rússia em direção à Zaporizhzhya, a maior cidade da região. Mas vilas como Kamyanske representam uma das partes mais perigosas da viagem dos refugiados - pois são o palco dos confrontos entre os dois exércitos.

Nós fazíamos o caminho contrário ao dos refugiados e deslocados internos. Encontramos dezenas deles na estrada, a maioria parados nos postos de controle do exército ucraniano. Os refugiados haviam amarrado panos brancos nas maçanetas e antenas dos carros para se diferenciarem de militares. Nosso carro tinha a palavra imprensa escrita com letras grandes em inglês e ucraniano (a palavra também é entendida pelos russos).

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Mas, à medida em que nos afastávamos de Zaporizhzhya, a estrada começou a ficar vazia e os vilarejos ucranianos, desertos. Passamos por mais dois postos de controle. No segundo, os ucranianos não só checaram nossos documentos, mas também revistaram o carro. Antes de nos liberar, um oficial ucraniano se aproximou e disse: “A partir daqui, vocês estão por sua conta, vocês entendem que não podemos protegê-los?”.

Ele só liberou nosso carro ao ter certeza de que tínhamos entendido. Entrávamos na “zona zero”.

Koss dirigiu rápido o SUV blindado pela rodovia deserta. Alguns quilômetros à frente, avistamos uma grande área com trincheiras ucranianas profundas, cavadas ao lado da rodovia. Havia dois carros de combate, possivelmente tanques de batalha T-72, protegidos dentro de abrigos para blindados (buracos na terra camuflados onde os blindados se posicionam só com o canhão para fora). Também havia lançadores de mísseis Javelin e ninhos de metralhadoras pesadas. Na rodovia, três militares orientavam os poucos carros que passavam.

A partir daquele ponto, tivemos certeza de estar na terra de ninguém.

Na rodovia, havia inúmeras marcas negras circulares que apontavam onde haviam caído por projéteis da artilharia. No meio da pista, desviamos de uma cratera que continha no centro uma granada de obuseiro não detonada. Todos os sinais de perigo estavam lá, mas continuamos dirigindo com a certeza de que a qualquer momento avistaríamos Kamyanske - onde encontraríamos casas destruídas e moradores escondidos nos porões.

Avistamos mais um posto de controle ucraniano. Lá, um soldado insistia em conferir documentos de veículos, provocando uma pequena fila de quatro carros. Abaixei a câmera, pois não é permitido filmar postos de controle, pela lei marcial ucraniana.

O soldado começou a gritar fazendo sinal para os quatro veículos darem meia volta, mas os carros não conseguiam manobrar por causa de uma grande quantidade de obstáculos antitanque - que são trilhos de trem soldados de forma cruzada com de mais de um metro de altura. Eles são chamados aqui de porcos-espinhos.

Olhei pela janela direita e vi o mesmo soldado correndo desesperadamente em direção a uma trincheira, tropeçando e rolando no asfalto. Um frio paralisante percorreu meu corpo em um milésimo de segundo.

Apesar de tudo que via, não conseguia acreditar no que estava se passando. Ouvi o assobio da parte final do voo de uma peça de artilharia e, ao virar a cabeça para o lado esquerdo, vi o projétil tocar o solo a menos de dez metros do nosso carro, gerando um estrondo seco. A granada arrancou do solo uma nuvem de detritos marrom no centro e cinzenta nas laterais, que atingiu a altura de uma casa. O vidro do carro se estilhaçou instantaneamente. Era um ataque de artilharia russa e nós - civis em quatro carros de passeio - éramos o alvo.

Koss reagiu rápido e acelerou o carro até uma pequena casa de tijolos aparentes. “Quando o carro parar, vamos todos descer”, gritou Fran. Só deu tempo de pegar a câmera, os coletes e capacetes balísticos que estavam no porta-malas - não que eles fossem fazer qualquer diferença contra granadas de artilharia. Corri com Fran até a pequena casa e nos abrigamos junto às paredes. Perdi meus óculos na correria.

Minutos depois, Koss, que era militar antes de se tornar jornalista, apareceu com o equipamento de proteção. Vestimos o mais rápido possível e, quando ligamos as câmeras (que haviam sido desligadas por causa do posto de controle), foi possível ouvir o zunido de outra granada de artilharia. Nos atiramos ao chão e ficamos lá ouvindo mais disparos.

Nesse momento, o pior passa pela cabeça. Me amaldiçoei por ter deixado o kit médico no hotel, mas lembrei que trazia torniquetes de combate nos bolsos da jaqueta. Pendurei-os numa alça do colete à prova de balas, rezando para não ter que usar.

Não havia muito abrigo na região, só nos restava deitar no chão e torcer para a próxima granada não nos atingir. A sensação é de total impotência e fragilidade. Qualquer alteração na pontaria do obus ou morteiro ou uma variação do vento podem decidir quem vai viver ou morrer. Não há nenhum tipo de proteção.

Dezenas de civis morreram próximo a Kiev dentro de seus carros ou perto deles enquanto tentavam fugir de suas vizinhanças bombardeadas. O terror que eu sentia deve ser similar ao que milhares de ucranianos estão experimentando todos os dias por aqui.

Os russos pareciam estar na região de Kamyanske tentando avançar em direção a Zaporizhzya. Eles estavam agora mirando nas trincheiras ucranianas. Eu via as nuvens de terra e detritos subirem daquela região repetidamente.

Pensei que poderíamos retornar a pé para não sermos avistados pelos russos, mas a última fortificação ucraniana tinha ficado quilômetros para trás - não parecia uma ideia factível.

Após cerca de uma hora, o bombardeio cessou e concordamos em voltar com o carro pelo mesmo caminho pelo qual tínhamos chegado. “Vamos lá”, gritou Koss. Em segundos, estávamos rodando novamente pela estrada. Não vi o soldado nem os outros carros. Meu colega acelerava ao máximo o SUV. Todos em silêncio no carro.

Achamos um viaduto e nos escondemos próximo aos pilares. Ficamos fora do carro por alguns minutos, tentando ouvir se vinham novos disparos, mas só ouvíamos o barulho do vento. Alguns bombeiros também haviam buscado abrigo ali e os cumprimentamos.

Alguns instantes depois - que pareceram horas -, voltamos a rodar na estrada. Ao passar pelos postos de controle anteriores, os militares se solidarizaram e perguntaram se estávamos bem. Dizíamos que sim e continuávamos.

Aqueles russos haviam mirado em carros civis, não em posições militares. Agora não era ninguém me falando, eu e meus amigos tínhamos sido os alvos. Ouvira falar que os russos não se importavam em atirar na imprensa, mas não imaginava que direcionariam sua artilharia sobre nós e sobre outros não combatentes.

Ao chegar ao hotel em segurança e ver os estragos no carro, sentia a adrenalina e a alegria de ter sobrevivido. Koss, Fran e eu nos abraçamos.

Eu sabia que, por mais que aquela fosse a natureza perigosa do nosso trabalho, em algumas semanas eu estaria de volta ao meu Brasil, e essa viagem à escuridão da guerra passaria a fazer parte de uma memória do passado. Mas infelizmente não será assim para os ucranianos.

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