Na entrada real de Henrique II em Rouen, 1 de outubro de 1550, homens nus ilustram a vida no Brasil e uma batalha entre os Tupinambás aliados dos franceses e os Tabajaras. Autor anônimo| Foto:

A maneira como foi colocada a sucessão das noções de Paraíso no artigo da semana anterior reforça metaforicamente um processo que conhecemos intuitivamente: mostrar na história do Brasil apenas o caminhar na direção do capitalismo. Neste sentido costumamos acentuar esta direção como se fosse única, empregando o lado europeu como norma e pensando o local como desvio a ser enquadrado.

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Sem negar esta dominante, no entanto, é possível fazer o mesmo percurso na via inversa, isto é, contar a história de processos locais que acabam ganhando mundo por vias inesperadas – a antropofagia, por exemplo.

Desde sempre o ato de comer gente foi notícia da América que se espalhou no velho continente. Ao contrário da Teoria do Valor dos tupinambá, registrada em uma única nota de um único observador, as descrições da antropofagia podem ser encontradas em centenas de relatos de viajantes desde o século 16. Viralizaram tão depressa quanto as news dos homens e mulheres que andavam nus como se estivessem no Paraíso.

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O vasto material europeu registra o choque – mas é quase tão inútil para entender a antropofagia quanto a tentativa de explicar fatos a partir da leitura dos milhares de comentários num post que viralizou. Como no caso do Paraíso, é bem mais fácil entender o caso a partir dos estudos recentes de antropólogos – o que nos leva de novo a Eduardo Viveiros de Castro.

Ele estudou os Araweté, um grupo tupi e escreveu um artigo intitulado “A imanência do inimigo” (publicado no livro “A inconstância da alma selvagem”), no qual explicita algo que os observadores do passado nunca reconheciam: o papel espiritual do ato antropofágico. Para mostrar as relações começa com um breve resumo da cosmologia do grupo:

“O universo dos Araweté tem sua origem e fundamento na diferença entre a humanidade (bidê) e a divindade (Maí). Essa diferença foi criada na separação entre o céu e a terra, no começo dos tempos. Em consequência de uma querela que opôs os homens aos futuros deuses, estes últimos partiram, levantando o firmamento e levando consigo a ciência da eterna juventude e da abundância sem trabalho. Os humanos, desde então, definem-se como ‘os abandonados’. (…) Em particular, os viventes terrestres estão submetidos ao tempo, isto é, são mortais”.

Mas os humanos deixados para trás são também, entre todos os seres vivos da natureza, “os únicos que se juntarão postumamente aos Maí”. Quando morrem, a alma é recebida no céu pelos deuses – num processo que não é exatamente tranquilo:

“Os Maí são antropófagos. Eles matam e comem os mortos assim que eles chegam aos céus. Em seguida eles o refazem, mergulhando os ossos da vítima numa bacia de pedra cheia de água mágica, que ferve sem fogo. Os mortos ressuscitam tornando-se como os Maí, isto é, eternamente jovens e belos”.

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A especificação da cosmologia dos Araweté, uma vez fixada, permite também um enquadramento mais universal. O tema da espiritualização do corpo pelo processo de morte e renascimento existe em quase todas as culturas. O caso mais evidente é o da morte e renascimento de Osíris (neste caso é Ísis quem faz o papel reservado aos Maí), crença central da mitologia egípcia. Na Ásia Menor da antiguidade era o Sol quem morria e renascia. Átis-Adônis, na cultura greco-romana. E por aí vai.

Se há algo que particulariza o caso, este algo é a proximidade. As trocas entre deuses e humanos acontecem sem a necessidade de qualquer aparato especial, como, por exemplo, templos ou altares:

“O xamanismo araweté é essencialmente um dispositivo de intercâmbio entre os viventes e os Maí. Os humanos dão de comer aos deuses, no sentido alimentar como no sexual, recebendo em troca cantos (a ‘música dos deuses’ cantada pelos xamãs) e outros bens espirituais: vida póstuma nos céus, bem entendido, mas também a persistência do mundo, pois a consumação canibal e sexual dos mortos impede que os Maí façam cair o firmamento, esmagando a terra”.

Dialogando diretamente com os deuses em suas viagens espirituais noturnas, os xamãs trazem os cantos que a tribo repete durante o dia, mantendo atualizada a relação com os seres espirituais. Organizando as festas rituais para satisfazer o apetite deles, conseguem impedir a queda do firmamento.

Mas existe outra via de comunicação entre mortais e imortais: matar um inimigo corajoso. Quando isto acontece, o guerreiro é obrigado a se recolher e entrar em jejum e abstinência sexual, durante o período em que o espírito do morto está irritado e buscando vingança. Passado este o morto desiste e passa a ir até os confins do universo buscar cantos, que traz de noite para seu matador apreciar em sonhos. Assim acontece uma nova junção, na qual o guerreiro recebe o mesmo tipo de recado dos xamãs – e passa adiante para o grupo admirar. Com isso deixa de ser um simples mortal:

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“Ser devorado após a morte é o destino de todo indivíduo, macho ou fêmea, xamã ou homem comum. Um único estatuto põe seu titular ao abrigo do canibalismo divino: o espírito de um matador sobe aos céus fundido com o espírito de sua vítima. . (…) Ele passa diretamente para o banho de imortalidade, transformando-se num ser incorruptível sem passar pela morte canibal”.

Esta é uma descrição presente da religiosidade – e no presente araweté não há o ritual antropofágico público tantas vezes contado pela literatura histórica. Entretanto, esta descrição permite que o ritual da morte e ingestão deliberada, partilhado pelo grupo, fosse ponto central da cultura tupi-guarani do século 16: a ingestão da carne conferia imortalidade espiritual ao guerreiro matador, transformando-o, digamos, num semideus do grupo.

Com tal cenário em vista é possível falar de outra espécie de cultura centrada num mito de morte e renascimento, alimentado em sua história por um milenar ritual de antropofagia simbólica, assim descrito por Carl Gustav Jung em seu livro “O símbolo da transformação na missa”:

“Os horrores da morte na cruz são imprescindíveis como condição preliminar da transformação na missa. Esta consiste, primeiramente, na vivificação de substâncias inanimadas e, depois, na mudança intrínseca e essencial dessas mesmas substâncias no sentido de uma espiritualização como matéria sutil. Tal concepção se expressa na participação concreta no corpo e sangue de Cristo, pela comunhão”.

Em outra obra, “Tipos psicológicos”, Jung mostra que este quadro geral trazia diferenças de doutrina, expressas na querela que ficou conhecida como “Problema da Transubstanciação”. Um dos lados tinha a seguinte formulação:

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“Em meados do século 9 o abade Pascácio Radberto produz um escrito sobre a ceia cristã afirmando que o vinho e a hóstia, na comunhão, se transformavam no verdadeiro sangue e na verdadeira carne de Cristo”.

A posição contrária seria a de João Scoto Erígena, segundo a qual “a ceia cristã nada mais seria que uma recordação da última ceia que Jesus celebrou com os discípulos”.

O tempo tratou a questão de maneira bastante carnal:

“Scoto Erígena, por mais claro e humanamente fácil que fosse seu pensamento, e por menos inclinado que estivesse em diminuir o sentido e valor da cerimônia sagrada, não estava sintonizado com o espírito de sua época e com os desejos do mundo circundante, o que se manifestou inclusive no assassinato pelas mãos de seus próprios companheiros de convento”.

A esta altura você, caro leitor, bem pode estar pensando: que diabos isso tem a ver com o Brasil? Senta que lá vem História.

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Nicolau Durand de Villegagnon era um cavaleiro francês que já havia corrido mundo quando convenceu o ministro do rei Gaspar de Collingny a bancar a montagem de um governo francês no Rio de Janeiro. O plano era viável, já que toda a região estava dominada por compatriotas que haviam se casado com nativas e, a partir desta aliança, controlado também o comércio.

Na altura em que os planos foram aprovados pelo rei Henrique II todos os envolvidos eram católicos – e deste modo a turma governativa trazida para a França Antártica incluía padres. O grupo desembarcou na baía da Guanabara em novembro de 1955. Demorou muito pouco tempo para o novo governador descobrir que teria um problema e tanto para enquadrar na mesma lei os súditos de pensamento mais castiço e aqueles franceses casados com várias índias e participantes de cerimoniais antropofágicos.

Vários livros contam as reviravoltas para tentar equilibrar as coisas. Num resumo breve, em menos de um ano o governador instalara seus aliados numa laje de pedra no meio do mar (a ilha que hoje fica bem ao lado da pista de pouso do aeroporto Santos Dumont, que ganhou o nome do governador). Isolado e sem ver solução, resolveu apelar para um antigo companheiro de bancos escolares: João Calvino. Num dia de 1556 a carta chegou a Genebra. Com o mestre ausente, foi aberta por seus auxiliares, e os resultados da leitura foram registrados por Charles Baird em “History of the Huguenote Migrantion to America”:

“Um culto solene teve lugar na catedral. Todos, naturalmente desejosos de difundir sua religião, deram graças a Deus por aquilo que viam como um caminho aberto para estabelecer sua doutrina e permitir que a luz do Evangelho brilhasse entre os povos bárbaros, sem Deus nem lei nem religião”.

Vários jovens estudantes cheios de fé, um dos quais o sapateiro Jean de Léry, se ofereceram para o trabalho de instruir os selvagens a respeito do cristianismo revelado. Formou-se assim o primeiro grupo de protestantes a cruzar o Atlântico. Depois de muitas peripécias, chegaram ao Rio de Janeiro em março de 1557. Foram recebidos por Villegagnon. Depois, ainda segundo Baird:

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“Concluída a sóbria refeição, o grupo foi deixado nas instalações providenciadas para todos. Consistiam em estacas cravadas na beira da água, as quais os selvagens a serviço do governador cobriram de grama. No lugar de camas tinham redes suspensas no ar, segundo o costume local. Podemos supor que foi uma noite insone para uma parte do grupo. O ar era tépido, como costuma ser em maio na Europa. O céu sem nuvens permitia a vista de novas constelações. A baía, com suas costas irregulares recobertas por graciosas palmeiras e as montanhas que lembravam os Alpes, deve ter deixado insone parte do grupo. Para os pastores, ao menos, os projetos acalentados eram ainda mais impressionantes. Estavam no Novo Mundo, onde a Palavra do Filho de Deus, tão recentemente revelada em toda sua pureza para as nações da Europa, iria ser levada para as tribos selvagens imersas na escuridão”

Calvinistas e católicos dividiam as observações dos índios antropófagos na mesma ilha, sempre dependendo da tradução dos intérpretes casados com índias e comedores de carne humana. Quando eles não estavam, os dois grupos discutiam Teologia. Em pouco tempo veio a explosão, num momento assim descrito por Sergio Buarque de Holanda:

“A crise surgiu na Pentecostes de 1557, quando nasceram dúvidas sobre se era lícito deitar água no vinho na cerimônia de consagração. Villegagnon optou pela afirmativa evocando a tradição, principalmente são Cipriano, são Clemente e os sagrados concílios. O [pastor] Pierre Richier, valendo-se das Escrituras, contradizia firmemente esta opinião”.

Villegagnon tinha tanta certeza de que sua posição teológica não apenas seria correta, mas de acordo com as novas doutrinas, que a defendeu em carta enviada ao próprio Calvino, na qual criticava as posições de outro pastor, Guillaume Chartier:

“Ensinava ele que a realidade interior é intelectual, não corporal, a ser percebida pela fé. Desse modo, se vos for oferecido o Cristo crucificado da morte e ressuscitado e crerdes que O recebereis será isso mesmo; de outra forma, será apenas pão que comeis. […] Que Cristo deve ser adorado apenas no espírito, e não na carne, para não se adorar o elemento terreno”.

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A disputa sobre a transubstanciação logo se tornou ainda mais violenta que no século 9, como narra Sérgio Buarque de Holanda:

“A controvérsia estava lançada e degenerou logo em violentos debates sobre a natureza da presença de Cristo nas espécies da Eucaristia. […] Aos poucos foram-se avolumando essas desinteligências e Villegagnon pretendeu impor a qualquer preço sua autoridade, desmandando-se em atos que fecharam o caminho a qualquer reconciliação. […] O convívio entre as facções em que se dividia a colônia foi ficando cada vez mais insustentável, agravando-se com as notícias, bem ou mal fundadas, de insubordinação e revoltas”.

Os rituais de processamento das diferenças não eram exatamente espirituais:

“Villegagnon submeteu todos a um rigoroso questionário que versou sobre pontos de teologia referentes aos sacramentos. E como três deles se mostrassem obstinados no apego às opiniões dos reformados, condenou-os por hereges, mandando supliciá-los e depois lançá-los ao mar”.

As desavenças de católicos e protestantes em torno do teor antropofágico da união do corpo e espírito na missa prosseguiram no retorno à França. De lá a controvérsia se espalhou pela Europa, com os desentendimentos levando à primeira guerra entre católicos e calvinistas na França – e pelo menos outras oito ocorreriam até o final da década de 1570.

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Assim, a simbologia tupinambá entrou na cultura europeia. Um francês da região de Rouen, Michel Eyquem, senhor do castelo de Montaigne, conheceu os tupinambás (dizem que tinha um criado trazido do Rio de Janeiro) e as guerras religiosas. Com isso na memória, em algum momento da década de 1570, ele escreveu um ensaio intitulado “Dos Canibais”, no qual dizia do prisioneiro e seu captor-comedor:

“Longe de se renderem diante do que se lhes faz, conservam um ar alegre nos dois ou três meses que estão em poder do inimigo; incitam seus captores a apressar-lhes a morte; desafiam-nos, injuriam-nos, lançam-lhes na cara a sua covardia e relembram as inúmeras batalhas por eles perdidas contra os seus. Conservo uma canção feita por um desses prisioneiros, onde se encontra este dito: ‘Que venham todos quanto antes, e se reúnam para comer minha carne, porque comerão ao mesmo tempo aquela de seus pais e avós, que outrora alimentaram e nutriram meu corpo. Estes músculos, esta carne e estas veias são as vossas, pobres loucos; não reconheceis que a substância dos membros dos vossos antepassados ainda está em mim? Saboreai-os bem e achareis o gosto da vossa própria carne’. Não há o menor traço de barbárie neste discurso. As testemunhas que descrevem os moribundos no momento do sacrifício pintam o prisioneiro cuspindo na cara de seus matadores e fazendo-lhes caretas. Não deixam, até ao último suspiro, de os insultar e desafiar por palavras e obras”.

A descrição da morte ritual termina antes do ritual do repasto antropofágico – pois o autor coloca neste momento a questão essencial que está sendo examinada no ensaio:

“Empregando nossos olhos, diríamos sem dúvida: eis aqui homens completamente selvagens. Mas, de fato, ou eles o são na realidade ou o somos nós. Isso porque existe uma maravilhosa distância entre a maneira de ser deles e a nossa”.

Este ensaio marcou a primeira grande influência da cultura tupi-guarani no pensamento europeu. Para Montaigne, seriam os tupi, e não os reis ou religiosos europeus, aqueles que manteriam a integridade mística entre corpo e espírito – aquela que se perdia com as guerras no âmbito da cristandade.

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O ensaio ganharia leitores como Rousseau, que atualizaria a visão no chamado Mito do Bom Selvagem, fundador das versões mais democráticas do Iluminismo. Mas isto já é outra história.