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A América Latina pode estar caminhando para um futuro sombrio
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Recém-lançado no Brasil, o livro “A nova América Latina”, de Fernando Calderón e Manuel Castells, faz um interessante exame crítico da conturbada História recente do continente. Na interpretação dos autores, essa região foi marcada, nas duas primeiras décadas do século 21, pela disputa permanente entre os modelos neoliberal e neodesenvolvimentista, assim definidos: “Entendemos por neoliberalismo o modelo de crescimento e distribuição baseado essencialmente na dinâmica do mercado, apoiada pelo Estado; (...) no neodesenvolvimentismo, o Estado é o motor do crescimento econômico e da repartição do produto, intervindo ativamente nos processos do mercado e na criação de infraestrutura”.

Respeitadas as especificidades e o timing diferente de cada país, Calderón e Castells identificam um padrão que poderia ser sintetizado assim: após uma breve guinada na direção do neoliberalismo, com a liberalização dos mercados e privatização de empresas públicas, a persistência da pobreza e da desigualdade social levaram ao poder governos neodesenvolvimentistas, elegendo candidatos populistas e estatizantes em vários países. Tentou-se então promover um “Estado do bem-estar tropical”, no qual “o Estado e o líder carismático se fundem no imaginário popular como referência basilar”, segundo os autores.

Em algum momento, contudo, todos esses governos se viram mergulhados em crises de legitimidade, provocadas por escândalos de corrupção e pela fragilidade de suas políticas públicas diante das oscilações da economia internacional, resultando na sensação atual de incerteza generalizada em relação ao futuro, compartilhada por todos os latino-americanos, e na quebra dos vínculos de confiança entre governantes e governados. Sempre segundo Calderón e Castells, após um período de relativa estabilidade no continente, essa situação pode se desdobrar em democracias de fachada e em rupturas com as instituições democráticas, levando a um futuro potencialmente sombrio.

Para piorar as coisas, foi em meio a este já delicadíssimo cenário que eclodiu a pandemia da Covid-19, cuja politização pelo campo da esquerda acelerou o desgaste dos governos de direita na América Latina. O resultado das últimas eleições na Bolívia, Argentina, México, Equador e Peru demonstra o apelo persistente das narrativas socializantes em situações de crise econômica profunda e acirramento das desigualdades. A pobreza sempre foi o melhor cabo eleitoral da esquerda.

Segundo as pesquisas, o Brasil está indo pelo mesmo caminho. Acontecendo ou não, é importante entender o contexto e a progressão dos acontecimentos no continente: os autores de “A nova América Latina” acertam quando atribuem o sucesso passageiro do neodesenvolvimentismo a duas premissas que se mostraram frágeis: a de que a demanda global por commodities continuaria crescendo indefinidamente; e a de que os preços dessas commodities continuariam elevados.

Durante algum tempo, isso permitiu o aumento do gasto público, o financiamento de políticas redistributivas e a explosão do crédito e do consumo, mas... “assim que o crescimento da China diminuiu e o preço das commodities caiu, as economias latino-americanas mostraram sua vulnerabilidade diante das flutuações da economia global”. Além disso, “ao mesmo tempo, a consolidação de regimes estatistas, controlados por um partido poderoso, evoluiu para um Estado patrimonial-corporativo no qual o acesso às empresas públicas se tornou fonte de recursos, influência e poder para os movimentos neopopulistas, gerando uma corrupção generalizada do sistema político”. Ainda que os autores não deem nome aos bois, esta é uma descrição perfeita do que aconteceu no Brasil nas duas últimas décadas.

Já neste outro trecho, eles afirmam claramente: “No Brasil, as mobilizações (...) que tinham caráter mais progressista, (...) expandiram-se em uma série de manifestações críticas ao regime neodesenvolvimentista liderado pelo PT, que desempenhou um papel importante no triunfo de Jair Bolsonaro – nem tanto pelo apoio ao candidato, mas pela crítica e a indisposição em relação ao governo Dilma Rousseff e ao PT.(...) O antipetismo permitiu, em grande medida, a vitória de Jair Bolsonaro”.

Particularmente no Brasil, o progressismo na pauta dos costumes é característico das elites, marcadas por uma má-consciência histórica e por um sentimento de culpa social estrategicamente cultivados na mídia e nas salas de aula

Por outro lado, o mal-estar social associado ao medo e à angústia também levou à inédita mobilização dos setores mais conservadores da sociedade, oriundos das classes médias e populares. É necessário dizer aqui que, particularmente no Brasil, o progressismo na pauta dos costumes é característico principalmente das elites, marcadas por uma má-consciência histórica e por um sentimento de culpa social estrategicamente cultivados na mídia e nas salas de aula. Em sua imensa maioria, o povão rejeita os pronomes neutros, o aborto, a ideologia de gênero, a racialização das relações sociais, a liberação das drogas e outras bandeiras encampadas pela esquerda.

Mas convém observar que Calderón e Castells evitam reduzir todos os problemas do continente à oposição convencional entre direita e esquerda. Ao contrário, eles tentam demonstrar que qualquer governo, independentemente de sua orientação ideológica, é obrigado a lidar com condicionantes sociais, culturais e, sobretudo, econômicas que são frequentemente ignoradas no debate político rasteiro do dia-a-dia. Fenômenos como a urbanização descontrolada, o papel das igrejas, o aumento da violência e do medo e a penetração do Estado pelo narcotráfico são discutidos e contextualizados de forma razoavelmente objetiva e serena, ainda que nem sempre livre de preconceitos.

Mas, embora acertem no diagnóstico, os autores perdem completamente a objetividade ao apontar “caminhos de esperança” nos movimentos identitários associados a minorias. Porque não dá para entender de que forma o deslocamento do foco de debates econômicos, voltados para o futuro, para movimentos que pregam acertos de contas com injustiças do passado pode contribuir para melhorar a situação do continente. Calderón e Castells falam na emergência de uma “cultura da solidariedade global”, mas nenhuma solidariedade nascerá do ressentimento, do sectarismo e do desejo de vingança que marcam boa parte dos movimentos identitários.

É de se louvar, em todo caso, a humildade dos autores quando escrevem: “Não sabemos a verdade. O que sabemos é que o futuro se constrói hoje em situações e condições muito adversas”. E mais ainda quando reconhecem: “As sociedades se dividiram, e a legitimidade do neodesenvolvimentismo e do estatismo dissipou-se gradualmente”.

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