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A distopia é logo ali
| Foto: Reprodução Instagram

Quando de seu lançamento na França, em janeiro de 2015, o romance Submissão, do escritor francês Michel Houellebecq, provocou enorme controvérsia – amplificada pelo atentado terrorista, ocorrido no mesmo mês, à redação do jornal satírico Charlie Hebdo, que matou 12 pessoas e feriu outras 11.

O ataque – uma forma de protesto de ativistas islâmicos contra uma charge publicada pelo jornal, que mostrava uma caricatura do profeta Maomé – despertou uma onda de indignação na França: centenas de milhares de pessoas foram as ruas em protestos marcados pelo slogan “Je suis Charlie!” ["Eu sou Charlie"].

Os franceses que foram às ruas não estavam apenas manifestando sua indignação diante da barbárie – o assassinato de civis inocentes. Estavam, também, defendendo a identidade francesa diante da ameaça muito palpável de desfiguração, à medida que a chegada de mais e mais imigrantes muçulmanos alterava não somente a demografia do país, mas também suas crenças e valores fundamentais.

Curiosamente, em 2015 os franceses ciosos de sua identidade como nação foram chamados de “identitários”: a palavra era empregada com um viés depreciativo, para descrever pessoas que resistiam à diversidade e à abertura do país à imigração.

Apenas oito anos mais tarde, a França e outros países europeus começam a tentar pisar o pé no freio das ondas migratórias e reverter o processo de acelerada islamização do continente, com restrições mais rígidas à imigração e a criação de programas de deportação.

Em junho passado, a União Europeia aprovou uma nova lei de imigração que torna mais difícil a permanência da Europa dos imigrantes. Hungria e Polônia foram além, afirmando que não receberão nenhum refugiado muçulmano, venha do norte da África ou do Oriente Médio.

E nesta semana mesmo os países nórdicos – Dinamarca, Suécia, Noruega, Finlândia e Islândia – anunciaram medidas coletivas de expulsão de imigrantes em situação irregular em seus territórios.

Talvez seja tarde demais, só o tempo vai dizer.

Mas, voltando ao romance Submissão: na época do lançamento, a polêmica sobre a suposta islamofobia do autor comprometeu seriamente a recepção e o entendimento do livro. Basta dizer que Houellebecq precisou cancelar a campanha de divulgação da obra e deixar Paris. Convém revisitá-la.

A ação do romance (lançado em 2015) se passa em 2022. Depois de um segundo turno apertado, Mohammed Ben Abbes, o candidato da Fraternidade Muçulmana, é eleito presidente da França, derrotando a candidata da Frente Nacional Marine Le Pen.

Conciliador e carismático, Ben Abbes introduz de forma gradual, mas firme, mudanças drásticas na sociedade, das regras do sistema educacional aos padrões de comportamento.

A premissa é engenhosa, e o tema, desnecessário dizer, atualíssimo em uma Europa às voltas com o desafio de lidar com o risco de islamização do continente (“submissão” é a tradução literal da palavra “Islã”).

Houellebecq  descreve uma França que se tornou uma sociedade teocrática, fundada nos preceitos mais radicais do islã. François, o narrador, é um professor universitário de 44 anos. A indiferença em relação à política é o ponto de partida para a subsequente aceitação da nova ordem que se instala no país. François testemunha o crescimento e a vitória de um partido muçulmano, que compete com a direita tradicional.

Não se trata de um romance sobre a eleição de um presidente muçulmano na França, contexto e pano de fundo da narrativa. O verdadeiro protagonista é François, solitário e cético, cínico em relação ao trabalho e às mulheres, vagamente desinteressado na política.

Obrigado a lidar com uma realidade inesperada, que terá impacto direto na vida acadêmica e no seu futuro profissional, François vê desabarem ao seu redor os alicerces simbólicos da sua cultura, alicerces que ele considerava permanentes.

Como romance de antecipação, “Submissão” foi comparado a “1984”, de George Orwell, e “Admirável mundo novo”, de Aldous Huxley. Mas a distopia de Houellebecq tem a peculiaridade de estar logo ali

À primeira vista, as consequências dessa nova realidade nem parecem totalmente desastrosas: surpreendentemente, as elites aderem ao novo projeto político, os conflitos étnicos desaparecem, a economia melhora e o desemprego diminui (porque a maioria das mulheres para de trabalhar).

Mas, na Sorbonne, cuja fachada agora ostenta um crescente, o símbolo islâmico, as funcionárias são obrigadas a usar véu. Um colega medíocre de François se converte à nova religião, adota a poligamia – agora incentivada – e com isso ascende meteoricamente na carreira. François, por sua vez, é induzido a se aposentar.

Politicamente incorreto e misógino, François é cruel consigo mesmo, com seus colegas e com suas amantes eventuais. Vive à deriva, sem laços familiares ou emocionais consistentes, e mesmo a sua maior paixão intelectual – a obra do escritor J.-K. Huysmans, tema de sua tese – já não desperta nele o menor entusiasmo. François acompanha tudo como um espectador quase indiferente, com uma neutralidade que pode ser chocante para o leitor.

Articulando o drama individual do protagonista com a exposição de um contexto coletivo transformação social radical, Submissão faz uma crítica poderosa e devastadora à perda dos valores da sociedade europeia contemporânea.

Como romance de antecipação, Submissão foi comparado a 1984, de George Orwell, e Admirável mundo novo, de Aldous Huxley. Mas a distopia de Houellebecq tem a peculiaridade de estar logo ali. Ela se torna ainda mais assustadora por tratar de temas de hoje, citando políticos em plena atividade. É, por assim dizer, uma distopia do presente.

Por sua atitude iconoclasta, que envolve provocações explícitas à esquerda, e por sua visão ácida do mundo acadêmico, Houellebecq foi acusado de oportunismo e de alimentar posições reacionárias com seu romance.

Bobagem. Ele apenas materializou de forma ficcional angústias que estavam e estão nos corações e mentes dos europeus nativos. Ele foi apenas o mensageiro de más notícias - que hoje são ainda piores que na época do lançamento do livro.

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