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Luciano Trigo

Luciano Trigo

Democracia relativa

A morte voluntária do jornalismo

A grande mídia brasileira perdeu credibilidade ao alinhar-se ao poder, distorcer fatos e omitir verdades, minando a democracia e a confiança do público. (Foto: Robert Słoma/Pixabay)

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Quando eu estava na faculdade, aprendi que o maior patrimônio de uma empresa de comunicação é a confiança do leitor. O que diferencia o jornalismo de verdade de um aparato de propaganda é a credibilidade conquistada pela independência editorial, pela pluralidade de vozes e pela busca da verdade, mesmo quando ela contraria interesses de poderosos.

Falando em português claro: quando abrem mão desse patrimônio, jornais, estações de rádio, canais de televisão e, mais recentemente, portais na internet estão cometendo suicídio – talvez não no sentido econômico, já que alguma vantagem devem obter no curto prazo, mas no sentido do abandono deliberado de sua missão. Ao filtrar, distorcer e omitir fatos para reforçar a versão oficial, eles destroem a ponte com seu público.

É o que vem acontecendo no Brasil de maneira acelerada nos últimos anos. A grande mídia, outrora marcada pela diversidade editorial, parece ter feito um pacto fáustico com o poder. O que se observa hoje é o alinhamento a uma narrativa hegemônica: existe uma convergência entre as principais redações do país e os interesses do campo político atualmente no poder.

É bem verdade que essa aliança não é fruto apenas de afinidades ideológicas, mas também de uma lógica de sobrevivência econômica. Com a crise dos modelos tradicionais de financiamento, muitos veículos de comunicação se tornaram dependentes de verbas públicas e do alinhamento político a governos, perdendo sua autonomia e a própria possibilidade de exercer sua função crítica.

Essa dependência financeira corrói a independência, transformando repórteres em porta-vozes do poder e o jornalismo em extensão do discurso oficial. O resultado é uma simbiose entre os poderes Judiciário e Executivo, parte da elite econômica e a grande mídia.

O STF, a instituição que deveria ser a guardiã da legalidade, está hoje blindada contra qualquer crítica mais incisiva, mesmo diante dos comportamentos mais heterodoxos (ou, na opinião de muita gente, de arbitrariedades flagrantes). Por sua vez, o grupo que mais simboliza o uso da máquina pública em benefício próprio, incluindo políticos condenados por corrupção em julgamentos históricos, foi reabilitado com o apoio dos mesmos veículos que denunciaram esses políticos e exaltaram a operação Lava-Jato em um passado recente.

A consequência inevitável desse processo foi a perda de confiança. O leitor não é bobo: percebe a manipulação, mesmo quando não domina os meandros do jornalismo. Ele enxerga a seleção enviesada de notícias, os silêncios eloquentes, as distorções de manchetes e as inversões de foco. Quando um veículo insiste em esconder escândalos envolvendo figuras ligadas ao governo, mas dá repercussão estrondosa a qualquer deslize de opositores, fica claro que não se trata mais de informação, mas de militância.

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Foi justamente por isso que boa parte da população migrou para meios alternativos: redes sociais, sites independentes e canais no YouTube. Não por acreditar que estes são perfeitos e imunes a erros, mas simplesmente porque deixaram de confiar na grande mídia. O rótulo de "fake news", usado e abusado pelo poder contra seus adversários, tornou-se amargamente irônico, porque, aos olhos do leitor comum, são justamente os grandes jornais e emissoras que praticam a omissão seletiva e a narrativa deformada.

Exemplo: quando ministros do STF ordenaram remoções de conteúdos críticos ao governo ou ao Judiciário, sob o pretexto de combater ameaças à democracia, a grande mídia, em vez de questionar se essas medidas representavam violações à liberdade de expressão, endossou-as com entusiasmo, como se fossem necessárias para proteger as instituições.

Essa erosão de confiança não ocorreu de forma súbita, mas por meio de práticas reiteradas ao longo dos anos:

Seleção das pautas: notícias ruins para o grupo no poder recebem tratamento brando ou são minimizadas em notas de pé de página. Já qualquer suspeita contra adversários políticos ganha manchetes e editoriais inflamados.

Distorção nos títulos: é comum que a escolha das palavras das manchetes influencie a percepção do leitor. Uma operação policial contra um aliado do governo pode virar "PF investiga suposto esquema", enquanto uma mera suspeita contra um opositor torna-se "PF flagra esquema criminoso".

Silêncio estratégico: alguns fatos simplesmente não são noticiados. Declarações polêmicas de poderosos, que poderiam ser vistas como afronta à separação de poderes, desaparecem. A omissão deliberada é talvez a forma mais insidiosa de manipulação.

Enquadramento enviesado: quando não dá para ignorar o tema, ele é enquadrado de forma a favorecer a narrativa dominante. Protestos contra o STF, por exemplo, são imediatamente rotulados como "atos antidemocráticos", enquanto manifestações pró-governo recebem cobertura simpática, como "festa da democracia".

O 8 de janeiro de 2023, ora em julgamento com resultado previsível, ilustra todas essas práticas: os atos de vandalismo em Brasília foram classificados como golpe pela narrativa oficial, apesar de evidências de que muitos participantes eram apenas cidadãos comuns revoltados e das suspeitas de infiltrações. Embora se tratasse de um episódio condenável, a cobertura deixou de lado perguntas incômodas: por que as forças de segurança falharam? Houve conivência? O papel do governo foi cuidadosamente protegido do escrutínio.

Essa simbiose entre a imprensa e o poder traz riscos profundos para a democracia. Primeiro, porque mina a pluralidade de ideias, já que somente uma narrativa é admitida no espaço público. Todo dissidente é tratado como "extremista" ou "antidemocrático", rótulos que interditam previamente qualquer debate.

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Segundo, essa simbiose fortalece a concentração de poder. O STF, ao se transformar em protagonista político, deveria ser fiscalizado de maneira ainda mais rigorosa pela mídia, mas ambos se tornaram parceiros. O mesmo vale para o Executivo. Essa relação de proteção mútua lembra modelos autoritários nos quais não existe distinção entre Estado e imprensa, apenas propaganda oficial.

Terceiro, ela deseduca o público. O jornalismo deveria formar cidadãos críticos, capazes de avaliar diferentes versões dos fatos. Quando existe apenas uma versão autorizada, a sociedade se infantiliza, perde o senso de discernimento e se torna mais vulnerável a manipulações. Ao sufocar a pluralidade e demonizar o dissenso, a grande mídia colabora para um ambiente de polarização cada vez mais tóxico.

Em todos os regimes autoritários, a imprensa sempre foi a primeira a ser cooptada ou silenciada. A diferença, no caso atual, é que a adesão foi voluntária. Por medo de perder patrocínios, verbas estatais ou prestígio junto ao sistema, muitos veículos de comunicação escolheram o caminho da submissão. Essa escolha, contudo, tem um custo altíssimo no médio e longo prazo: a perda da própria relevância.

A erosão da confiança na mídia é péssima para a sociedade e para as próprias empresas de comunicação. Aos poucos, elas veem sua audiência minguar, suas assinaturas serem canceladas, suas redações encolherem. Mas, em vez de perceber que a causa está na perda de credibilidade, a grande mídia insiste em dobrar a aposta na narrativa oficial, aprofundando o divórcio com seu público.

Essa erosão também afeta a economia: quando investidores desconfiam de reportagens enviesadas sobre estabilidade política e econômica, desenvolvem uma atitude de cinismo. Se a mídia mente, por que acreditar nas instituições que se beneficiam? Isso pode resultar em apatia cívica ou, pior ainda, na revolta da população.

Se essa tendência não for revertida, o futuro do Brasil será sombrio. Sem jornalismo independente, a democracia se torna um simulacro, no qual existem eleições, mas o debate público é manipulado. O cidadão, por sua vez, buscará refúgio nas brechas que escaparem do aparato de censura, na falta de canais confiáveis para expressar suas críticas e frustrações.

Os riscos – polarização, erosão democrática, cinismo social – demandam urgência: uma imprensa independente é vital para a sobrevivência da democracia. O Brasil corre o risco real de um futuro em que a verdade é ditada pelo poder, não revelada pela imprensa. Em breve, restará apenas a lembrança nostálgica de um tempo em que o jornalismo existia de fato — e a amarga constatação de que sua morte foi, em grande medida, autoinfligida.

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