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Luciano Trigo

Luciano Trigo

Liberdade de expressão

Cálice

(Foto: Luciano Trigo com ChatGPT)

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Li que autoridades do Judiciário prestigiaram o show de Gilberto Gil, em sua turnê Tempo Rei. Parece que aplaudiram com entusiasmo, talvez até com os olhos marejados, a canção “Cálice”, uma parceria de Gil com Chico Buarque. São, de fato, dois grandes artistas.

Proibida pela ditadura militar em 1973, “Cálice” só foi lançada em disco cinco anos mais tarde. A letra, reproduzida adiante, fala sobre censura, e é compreensível que jovens nostálgicos do que não viveram e veteranos da resistência se comovam quando Gil canta a música em seu show, com seus dreads grisalhos e seu jeito doce.

Mas combater a ditadura de 50 anos atrás é uma forma segura de praticar a virtude. Pena que essa mesma plateia permaneça calada quando, supostamente em plena democracia, jornalistas são perseguidos por crime de opinião, humoristas são condenados à prisão por piadas politicamente incorretas, parlamentares são cassados e até uma juíza é levada ao exílio.

De certa forma, o silêncio voltou a ser imposto – não apenas por meio de canetadas, mas também por cancelamentos seletivos. A censura, que um dia perseguiu a esquerda e vestiu farda, hoje persegue a direita e pode vestir toga. Mas também se esconde atrás de avatares de delatores e recebe o apoio de jornalistas famosos, seja por ingenuidade, covardia ou interesse.

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O fato é que a liberdade de expressão não está hoje ameaçada somente por mãos oficiais, mas também pela mídia cúmplice e pela moral inquisitória de quem julga deter o monopólio da virtude.

Parece não haver mais espaço para a pluralidade de vozes que até outro dia era considerada indispensável à democracia. Ao contrário: o apoio à censura se tornou um abrigo seguro para muitos. O pior é que eles realmente acreditam que há liberdade quando podemos rir do inimigo, mas ele não pode rir de nós; e que há justiça quando só se pune um lado. Ignoram que toda censura começa com uma justificativa moral — e termina em um deserto de vozes e ideias.

Cegos ou indiferentes ao sofrimento alheio, incluindo o das pessoas comuns condenadas a 14 anos de prisão ou mais, aqueles que julgam defender a democracia pedem ainda mais censura e repressão: ao mesmo tempo em que se emocionam com o jogo de palavras “cálice/cale-se”, gritam sem nenhum pudor: “Sem anistia!”.

É uma contradição grotesca, ainda maior quando o aplauso vem de membros de uma instituição que trabalha incansavelmente no sentido de relativizar e restringir a liberdade de expressão. As mesmas mãos que aplaudem um hino à liberdade, à noite, durante o dia temperam a liberdade com uma série de ressalvas, decidindo quem pode falar e o que pode ser dito. É como se afirmassem: “Aplaudimos a luta contra a censura — desde que ela se limite à censura do passado”.

Até pouco tempo atrás, aliás, a grande mídia era cúmplice do cerco à liberdade de expressão. Mas parece que agora está finalmente acordando para os perigos envolvidos nesse processo. Como escrevi em outro artigo, censura não tem ombro.

A liberdade de expressão virou parêntese, cláusula condicional. É uma liberdade constrangida, comprimida o tempo inteiro por ameaças de responsabilização, sempre em nome de causas nobres. O próprio medo se tornou mais sutil. Não se teme mais o porão, mas a desmonetização, o banimento, o processo kafkiano.

O "cale-se” que engasga a melodia da canção de Chico poderia ser a trilha sonora de um país que teme a piada, a crítica, o desabafo

Em um país onde verdades inconvenientes são engolidas em seco, a liberdade vai se encolhendo como quem pede licença para existir. A democracia, dizem, está sendo protegida. Mas protegida de quem?

O que o cidadão comum vê é a tesoura. O "cale-se” que engasga a melodia da canção de Chico poderia ser a trilha sonora de um país que teme a piada, a crítica, o desabafo. Na ditadura militar, a censura pelo menos era explícita e tinha regras claras. A repressão era torpe, violenta, mas frontal. Hoje, a covardia ganha um verniz democrático, os censores não ousam dizer seu nome.

Quando o medo habita os corações, quando uma piada, um meme ou um joinha se tornam provas de crimes passíveis de prisão, não é mais necessário um AI-5. Movida pelo medo de represálias, a autocensura também ganha força: quantas pessoas evitam certas palavras ou temas para evitar aborrecimentos ou, no caso dos artistas, para não perder patrocínios, seguidores, ou mesmo a segurança e a liberdade?

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O cálice da canção de Chico Buarque e Gilberto Gil voltou, e quem ousar discordar sabe que pode acordar com intimação batendo na porta, contas nas redes sociais suspensas, canais no YouTube removidos. Ou coisa pior.

Por tudo isso, “Cálice” não deveria ser ouvida hoje apenas como um lamento contra a censura do passado, mas também como um alerta contra qualquer tentativa de silenciar e controlar a sociedade, em qualquer tempo, venha de onde vier:

Pai, afasta de mim esse cálice/ Pai, afasta de mim esse cálice/ Pai, afasta de mim esse cálice/ De vinho tinto de sangue

Como beber dessa bebida amarga/ Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito/ Silêncio na cidade não se escuta

De que me vale ser filho da santa/ Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta/ Tanta mentira, tanta força bruta

Como é difícil acordar calado/ Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano/ Que é uma maneira de ser escutado

Esse silêncio todo me atordoa/ Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra qualquer momento/ Ver emergir o monstro da lagoa

De muito gorda a porca já não anda (cálice)/ De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai (pai), abrir a porta (cálice)/ Essa palavra presa na garganta

Esse pileque homérico no mundo/ De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca/ Dos bêbados do centro da cidade

Talvez o mundo não seja pequeno (cálice)/ Nem seja a vida um fato consumado (cálice, cálice)/ Quero inventar o meu próprio pecado/ (Cálice, cálice, cálice)
Quero morrer do meu próprio veneno/ (Pai, cálice, cálice, cálice)

Quero perder de vez tua cabeça (cálice)/ Minha cabeça perder teu juízo (cálice)/ Quero cheirar fumaça de óleo diesel (cálice)/ Me embriagar até que alguém me esqueça (cálice)

Mas, se a censura intimida, a liberdade é teimosa. E o Brasil de hoje também evoca outra canção de Chico Buarque que merece reflexão: o sambinha “Apesar de você”, que dizia:

Amanhã vai ser outro dia/ Amanhã vai ser outro dia/ Amanhã vai ser outro dia

Hoje você é quem manda/ Falou, tá falado/ Não tem discussão, não
A minha gente hoje anda/ Falando de lado/ E olhando pro chão, viu

Você que inventou esse estado/ E inventou de inventar/ Toda a escuridão
Você que inventou o pecado/ Esqueceu-se de inventar/ O perdão

Apesar de você/ Amanhã há de ser/ Outro dia
Eu pergunto a você/ Onde vai se esconder/ Da enorme euforia

Como vai proibir/ Quando o galo insistir/ Em cantar
Água nova brotando/ E a gente se amando/ Sem parar

Quando chegar o momento/ Esse meu sofrimento/ Vou cobrar com juros, juro
Todo esse amor reprimido/ Esse grito contido/ Este samba no escuro

Você que inventou a tristeza/ Ora, tenha a fineza / De desinventar
Você vai pagar e é dobrado/ Cada lágrima rolada/ Nesse meu penar

Apesar de você/ Amanhã há de ser/ Outro dia
Inda pago pra ver/ O jardim florescer/ Qual você não queria
Você vai se amargar/ Vendo o dia raiar/ Sem lhe pedir licença
E eu vou morrer de rir/ Que esse dia há de vir/ Antes do que você pensa

Apesar de você/ Amanhã há de ser/ Outro dia
Você vai ter que ver/ A manhã renascer/ E esbanjar poesia
Como vai se explicar/ Vendo o céu clarear/ De repente, impunemente
Como vai abafar/ Nosso coro a cantar/ Na sua frente

Apesar de você/ Amanhã há de ser/ Outro dia
Você vai se dar mal/ Etecetera e tal/ Lá lá lá lá laiá

Por fim, “Tempo Rei”, a música que dá título à turnê de Gilberto Gil, também nos lembra algo importante: que o tempo é um juiz implacável, ainda mais que os ministros do Supremo, e que todas as tentativas de controle da sociedade são temporárias, Mesmo que pareçam ter vindo para ficar.

Por mais que a população se sinta hoje impotente, o tempo sempre renova “as velhas formas do viver”. Um dia a verdade e a liberdade irão prevalecer, e esse dia há de vir antes do que a gente pensa.

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