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Livro sobre a pandemia combina reportagem e teoria da conspiração
| Foto: Divulgação

Recém-lançado na Espanha, “La verdad de la pandemia – Quién ha sido y por qué” está jogando gasolina na fogueira das polêmicas em torno da Covid-19, na Europa. O gosto pela controvérsia da autora – a jornalista investigativa Cristina Martín Jiménez – já tinha ficado explícito no seu livro mais famoso, “El club Bilderberg – Los amos del mundo”, no qual ela denunciou o globalismo e o plano diabólico de dominação do planeta por uma super-elite determinada a controlar e manipular o restante da população.

Em “La verdad de la pandemia”, Cristina vai além. Ela afirma que o coronavírus é uma arma de guerra e acusa a OMS de participar ativamente de uma conspiração para destruir a economia do planeta, o que seria usado como pretexto para a implantação de um novo modelo de governança global – o objetivo básico do projeto globalista de reengenharia social. “Estamos em guerra, uma guerra silenciosa iniciada pelas estruturas de poder para dominar o mundo com o discurso do medo”, escreve a autora.

Mais que isso: ela acusa o presidente da OMS, Thedros Adhanom, de ser um criminoso a serviço de um projeto de diminuição deliberada da população do planeta, começando pelo “excedente” dos idosos, que representam 70% dos mortos por Covid-19. Aqui, como em outros temas, Cristina combina verdades objetivas e uma boa dose de especulação. Por exemplo, ela lembra que Adhanom foi ministro da ditadura etíope e tem laços com o partido comunista chinês, o que é fato; mas não decorre daí que ele esteja envolvido em um projeto genocida.

“Estamos em guerra, uma guerra silenciosa iniciada pelas estruturas de poder para dominar o mundo com o discurso do medo”

Já Bill Gates, Cristina descreve como um “sociopata eugenista disfarçado de filantropo”. Ela acusa o bilionário americano de promover a distribuição maciça de vacinas que tornaram inférteis as mulheres das regiões mais pobres da África. O plano da super-elite da qual Gates faz parte seria acabar com a pobreza exterminando os pobres – e aumentar o intervencionismo estatal de forma a proteger suas fortunas privadas, preservando o status quo. “É uma distopia”, escreve Cristina.

Em uma entrevista recente, quando lhe perguntaram se tomaria uma vacina para a Covid-19 promovida por Bill Gates, Cristina respondeu: “Pare ele, o vírus somos nós. Com as suas vacinas, ele diminuirá a população em 10 ou 20 por cento. É um instrumento para matar. Os escândalos no Quênia, na Nicarágua e no México demonstram isso”.

O problema é que o capítulo no qual a autora aborda esses escândalos, ainda que reúna dados assustadores, fundamenta essa acusação gravíssima em ilações, sem quaisquer provas contundentes – até porque, se houvesse provas contundentes de que Gates vem usando vacinas para promover homicídios em massa, ele estaria preso.

É importante destacar que a autora não nega a gravidade nem muito menos a existência da pandemia, como fazem ainda hoje negacionistas no Brasil e no mundo: o que ela afirma é que o vírus é fruto de uma mutação genética deliberadamente produzida em laboratórios militares da China como ferramenta de guerra – mais uma vez, sem provas contundentes.

A narrativa de Cristina é engenhosa, mas, dada a gravidade de suas denúncias, carece de fundamentação convincente. Nem tudo que faz sentido é necessariamente verdadeiro. Cético por temperamento, li com interesse “La verdad de la pandemia”, mas achei difícil estabelecer no texto uma fronteira entre o que é reportagem e o que é ficção – e a combinação entre as duas pode ser perigosa.

A autora afirma que estamos no meio de uma guerra entre os “soberanistas” – como o recém-derrotado Donald Trump – e os globalistas, que têm no ditador chinês Xi Jinping uma de suas referências como modelo para uma ditadura global, que estaria sendo planejada já há décadas. Na nova ordem mundial que se pretende implantar, haverá uma vigilância permanente, e os dissidentes serão perseguidos: “Querem uma sociedade sem amor, e para isso nos domesticam proibindo reuniões familiares e celebrações natalinas. Em uma nova religião, uma falsa ecologia substitui os 10 mandamentos. É uma guerra espiritual”.

Cristina acredita que a elite totalitária e seus cúmplices – jornalistas, políticos, artistas, filantropos, empresários, cientistas e intelectuais – usam a ecologia e os direitos humanos como disfarces para sua agenda do mal, como “falsos ídolos”. Aos que a acusam de disseminar teorias da conspiração, ela se defende argumentando que essa expressão foi uma invenção da CIA para desqualificar seus inimigos.

Mas é difícil aceitar como verdade absoluta tudo que ela escreve. Por exemplo, Cristina cita como indício da veracidade das suas teses uma capa da revista “The Economist” com a manchete “Está tudo sob controle”. Ora, a reportagem trata de um tema que vem sendo debatido abertamente desde o início da pandemia: os riscos do aumento da intervenção governamental na vida das pessoas, via isolamento social, lockdown, quarentena etc. Mas a autora escreve como se houvesse uma mensagem cifrada na manchete.

De maneira similar, ela cita um relatório sobre os efeitos do crescimento populacional descontrolado para o planeta, produzido pelo governo americano na década de 70, como prova de que há um plano malévolo em curso (o “Informe Kissinger”). Ora, estudos sobre o impacto do crescimento demográfico, ainda que cheguem a conlusões catastróficas, não implicam necessariamente a adoção de medidas criminosas para conter o aumento da população.

Mas um exemplo: declarações de Bill Gates, estas citadas mais de uma vez, alertando para o risco de uma pandemia para o planeta; ora, esta era uma preocupação bastante comum, compartilhada por vários cientistas anos antes da Covid-19 – bastando citar a previsão semelhante feita no Brasil pelo biólogo (e defensor do “autoritarismo do bem”) Atila Iamarino. O fato de Gates ter alertado para esse perigo não signfica que ele está por trás da eclosão da pandemia.

“La verdade sobre la pandemia” é uma leitura interessante em vários aspectos, mas, embora Cristina esteja certíssima em muitas críticas que faz à China, à OMS, a Bill Gates e ao caráter errático dos lockdowns impostos a população – particularmente na Espanha, que foi um dos países com maior índice de óbitos no começo da pandemia – ela falha em demonstrar de forma convincente o nexo causal entre aquilo que relata e aquilo que conclui.

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