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Nisman é um cadáver que ainda incomoda (também temos os nossos)
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A história é bem conhecida. Alberto Nisman, procurador federal argentino, investigou durante mais de 10 anos o atentado terrorista à associação judaica AMIA, que matou 85 pessoas e feriu centenas, em julho de 1994, em Buenos Aires. Foi um dos maiores atentados terroristas no Ocidente pré-11 de setembro.

Por conta da investigação do caso AMIA, Nisman vinha recebendo repetidas ameaças de morte, explícitas e veladas, algumas delas com as digitais do governo. Em 18 de janeiro de 2015, horas antes de apresentar formalmente suas conclusões ao Congresso, ele foi encontrado morto no banheiro do seu apartamento, com um tiro na cabeça.

Já se sabia que ele denunciaria formalmente a então presidente Cristina Kirchner, o chanceler Héctor Timerman e outros políticos da situação por acobertarem os iranianos apontados como responsáveis pelo ataque à AMIA, realizado em parceria com o grupo islâmico libanês Hezbollah.

Até hoje, as altas autoridades iranianas acusadas por Nisman, que são alvo de mandados de prisão internacionais pela Interpol, não enfrentaram um julgamento na Argentina e continuam protegidas em território iraniano.

Tudo leva a crer que mataram Nisman, mas parece que ele se recusa a morrer de vez: é um cadáver que não para de incomodar. Mal comparando, é uma espécie de versão argentina de Celso Daniel, este assassinado em 2002 em circunstâncias suspeitíssimas, que nunca foram devidamente investigadas. As duas mortes continuam sem punição, e tanto Nisman quanto Celso Daniel voltam te tempos em tempos, como fantasmas, para assombrar seus algozes.

Suicídio ou assassinato?

Poucas pessoas duvidam de boa-fé que Nisman tenha sido assassinado. E fica ainda mais difícil acreditar na hipótese do suicídio depois de se assistir à série documental “Nisman – O promotor, a presidente e o espião”, lançada pela Netflix.

Ainda que dê voz a diferentes versões, opiniões e pontos de vista, demonstrando imparcialidade na apuração e na exposição dos fatos, a série em seis episódios de uma hora, dirigida pelo britânico Justin Webster, não deixa pedra sobre pedra. Tudo aponta para o assassinato.

Mais que isso: a narrativa do documentário é tão meticulosa, completa e clara que dá a impressão de ter realizado o trabalho que a Justiça argentina não fez, por incompetência ou deliberada má-vontade.

A Justiça dos hermanos, aliás, parece ser tão inoperante quanto a nossa: somente em 2018, já no Governo Macri, e ainda sem ter reunido provas conclusivas, a Câmara Federal de Buenos Aires, um tribunal de segunda instância, determinou que as investigações se concentrassem na hipótese do homicídio “com a celeridade e seriedade que tão grave fato impõe”.

Assista abaixo ao trailer da série “Nisman – O promotor, a presidente e o espião”:

“Nisman – O promotor, a presidente e o espião” reúne farto material de arquivo – incluindo fotos impressionantes da cena do crime e do cadáver do procurador, gravações de chamadas telefônicas e registros do trabalho (aparentemente porco) da perícia – e dezenas de entrevistas inéditas que exaurem o tema em seus dois principais aspectos: o policial e o político.

Curiosamente um dos personagens, entrevistado em 2017, é o atual presidente argentino, Alberto Fernández: no quinto episódio da série, até mesmo ele afirma duvidar que Nisman tenha se matado. Mas, depois de eleito, Fernández mudou de ideia: hoje ele afirma que não há provas suficientemente robustas que apontem para o assassinato.

Dos três protagonistas citados no título, o “promotor” está morto, e a “presidente” se recusou a gravar depoimento (ela só aparece em imagens de arquivo, nas quais revela uma retórica extremamente populista e irritantemente manipuladora). O “espião” fala muito pouco: é Horacio Antonio (“Jaime”) Stiuso, que fez carreira no serviço de inteligência da Argentina e foi colaborador próximo de Nisman.

Depois de dar um depoimento protocolar à Jusiça, Stiuso fugiu para os Estados Unidos com a família. Assistindo à série, percebe-se por quê: ele rapidamente se tornou o alvo seguinte da rede de intrigas que levou à morte do procurador. Seu depoimento ao diretor da série é visivelmente o de um homem duro mas apavorado, que afirma com todas as letras que Cristina Kirchner planejava sua morte.

É importante ressaltar que não é só a morte de Nisman que continua impune, mas também o assassinato das 85 vítimas do atentado de 1994. Nisman tinha acusado o Irã de planejar o atentado à AMIA, antes de acusar Cristina Kirchner de traição por perverter o curso da Justiça: a então presidente assinou um memorando que delegava ao governo iraniano influência significativa sobre a decisão judicial final. Na opinião de Nisman, isso equivalia a pedir aos autores do atentado que investigassem o próprio crime.

Como seria de se esperar, o caso Nisman foi extremamente politizado na Argentina. Há indícios de que Cristina Kirchner teria pressionado a polícia e a Justiça para apoiarem a versão do suicídio, mas a série também destaca outra estratégia torpe adotada pelos governistas em um determinado momento: tentar destruir a reputação de Nisman expondo aspectos de sua vida privada.

Por exemplo, foram colados cartazes nas ruas com fotos do procurador cercado de jovens modelos em festas e viagens, como se isso o desabonasse. Mas foram além. Em um registro particularmente nojento, a ex-presidente (e atual vice) sugere que Nisman, que era divorciado, teria um relacionamento homossexual com o técnico de informática que o visitou na noite fatídica, e que sua morte poderia ter resultado de um “crime passional”. Um senador governista foi ainda mais longe, afirmando que Nisman era um “sem-vergonha”, que poderia ter morrido após participar de uma orgia gay regada a álcool.

Por mais que a série da Netflix tenha novamente atraído os holofotes para o caso, tudo indica que os anos vão passar e ninguém será responsabilizado – mais uma vez, aliás, como no caso Celso Daniel. A propósito, em março de 2019 Osvaldo Raffo, um dos peritos que trabalharam na autópsia de Nisman, foi encontrado morto com uma bala na cabeça. Já no caso Celso Daniel, nada menos que sete testemunhas morreram de forma misteriosa.

P.S. Um outro atentado, este à liberdade de expressão, foi cometido esta semana, no Brasil. Houve quem aplaudisse. Se você bate palma quando policiais entram na casa dos seus adversários por causa de opiniões das quais você discorda, pense que amanhã podem discordar da sua opinião e entrar na sua casa também.

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