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A pensadora Hannah Arendt em 1944
A pensadora Hannah Arendt em 1944| Foto: Divulgação

Ainda que relativamente breve, omitindo vários episódios importantes, e exclusivamente baseada em fontes secundárias, a biografia “Arendt – Entre o amor e o mal”, da escritora sueca Ann Heberlein, recém-lançada pela Companhia das Letras, é uma leitura interessante para os nossos dias conturbados e de polarização política.

Heberlein apresenta um resumo crítico competente da trajetória da filósofa e pensadora da política Hannah Arendt (1906-1975), que foi uma testemunha engajada (e, em mais de um sentido, vítima) de algumas das maiores tragédias do século 20, começando pela ascensão do regime nazista na Alemanha, na década de 30.

Como se sabe, naquele período a jovem Hannah, judia de classe média, era aluna e amante do filósofo Martin Heidegger, casado, por quem acabou sendo traída e abandonada. Por ação e omissão, Heidegger apoiou o Nazismo e contribuiu pessoalmente para prejudicar professores e intelectuais judeus, sendo devidamente recompensado pelo regime em sua bem-sucedida carreira acadêmica – tema polêmico que já rendeu vários livros.

Hannah, por sua vez, foi obrigada a se exilar do seu país, chegou a ser internada em um campo de concentração na França ocupada e, mais tarde, teve que fugir da Europa para se radicar nos Estados Unidos, onde aprendeu um novo idioma, trabalhou como jornalista, recomeçou sua carreira universitária e permaneceu até morrer.

Seguramente, essa experiência traumática e fundadora do relacionamento com Heidegger foi determinante dos rumos que tomaria nas décadas seguintes o pensamento de Hannah Arendt sobre a natureza humana, o perdão e a culpa, o amor e o mal – pensamento materializado em obras como “A condição humana”, “Homens em tempos sombrios” e “As origens do totalitarismo”, ambiciosos ensaios que acabaram sendo ofuscados pelo livro mais famoso da autora, “Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal”, na verdade uma grande reportagem sobre o julgamento do criminoso nazista em Israel, entremeada de reflexões controversas sobre a responsabilidade dos alemães e o comportamento do povo judeu durante o Holocausto.

Foi em “Eichmann em Jerusalém” que Hannah Arendt formulou o conceito, muitas vezes mal compreendido, de “banalidade do mal”. O conceito está associado ao que ela chama de "desenraizamento" da experiência humana em relação à realidade a à moralidade, bem como à subserviência acrítica a ordens superiores, o que transformou pessoas comuns e até medíocres, mas não particularmente más, em cúmplice das atrocidades nazistas.

Ou seja, a hipótese de Hannah é que o mal está intimamente associado à ausência de pensamento, à renúncia deliberada à reflexão, entre aqueles que o praticam. Compreensivelmente, o conceito de banalidade do mal acabou provocando mal-estar na comunidade judaica internacional, que interpretou que a autora estava isentando os alemães de culpa e sugerindo que houve um “colapso moral” tanto dos alemães que apoiaram o nazismo quanto dos judeus que foram suas vítimas.

Não há nada de exatamente original na narrativa de Heberlein sobre a história de amor entre Hannah e Heidegger, ou sobre seu relacionamento com outros companheiros de jornada intelectual: basicamente todas as informações foram retiradas de biografias pré-existentes da pensadora, como as de Elzbietta Ettinger e, principalmente, Elizabeth Young-Bruehl. O principal mérito do livro de Heberlein, portanto, não está em qualquer revelação ou descoberta biográfica, mas no entrelaçamento constante e engenhoso das experiências pessoais de Hannah Arendt com a evolução de sua produção teórica – justamente por se tratar de um pensamento fortemente ancorado nas experiências concretas. Nas palavras da cientista política Janice Gross Stein, “o livro ‘Arendt – Entre o amor e o mal’ mostra como o pessoal e o político, o viver e o pensar estão entrelaçados em uma trama que não podemos, e não devemos, separar”.

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