Fernando Pessoa o chamou de “imperador da língua portuguesa”. No Brasil e em Portugal, não há estudioso de Literatura que não reconheça a sua importância. O estilo impecável e a riqueza da linguagem dos seus sermões e da sua correspondência impressionam ainda hoje, mais de 300 anos após sua morte. São leitura obrigatória para qualquer pessoa minimamente culta que fale e admire o idioma português.
Mas não foi só isso. No Brasil, como missionário da Companhia de Jesus, ele defendeu com fervor os povos indígenas, combatendo sua exploração e escravização, a ponto de ser chamado pelos índios evangelizados de “paiaçú”, “grande pai” em tupi.
Estou falando do Padre Antônio Vieira (Lisboa, 1608 - Salvador, 1697), um dos mais influentes personagens da História do Brasil-Colônia.
Pois bem, o busto de Antônio Vieira será removido dos jardins da PUC - Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, onde se encontra desde 2011. A obra foi doada pela Câmara Municipal de Lisboa, em retribuição ao busto do escritor Machado de Assis presenteado à Universidade Católica Portuguesa em 2008.
Isso porque, por iniciativa de vereadores do PSOL, foi aprovada no último dia 29 pela Câmara dos Vereadores do Rio uma lei que proíbe manter ou inaugurar monumentos em homenagem a “escravocratas, eugenistas e pessoas que tenham violado os direitos humanos”.
Uma das autoras do projeto afirmou, em reportagem publicada pela Folha de S.Paulo: “Não vamos mais aceitar a naturalização e, pior, a exaltação de figuras que promoveram o racismo e o fascismo ao longo da história e hoje têm os seus crimes atenuados pelo revisionismo praticado pela extrema direita”.
No século 17, por sua defesa dos cristãos-novos e judeus, Vieira entrou em confronto com a Inquisição. Hoje ele volta a ser perseguido, por novos inquisidores. Um dia, quem sabe, seus livros serão queimados em praça pública, em nome do amor e em defesa da democracia. Compre logo seu exemplar dos Sermões, antes que seja proibido.
Pois é. O Padre Antônio Vieira – o Padre Antônio Vieira! – foi reduzido a uma escória fascista e racista da extrema-direita. Foi cancelado. Imagino que o passo seguinte será apagá-lo dos livros escolares – ou no mínimo reescrever esses livros “contextualizando” o papel do principal nome do Barroco em língua portuguesa, de maneira a transformá-lo em um odioso vilão, a ser devidamente apedrejado.
Estamos falando do homem que em 1633 escreveu o seguinte a propósito dos escravos africanos, no “Sermão 27 do Rosário”, pregado a uma “irmandade de pretos devotos a Nossa Senhora do Rosário”:
“Estes homens não são filhos do mesmo Adão e da mesma Eva? Estas almas não foram resgatadas com o sangue do mesmo Cristo? Estes corpos não nascem e morrem, como os nossos? Não respiram com o mesmo ar? Não os cobre o mesmo céu? Não os aquenta o mesmo Sol? Que estrela é logo aquela que os domina, tão triste, tão inimiga, tão cruel? (...) Porque a natureza, como Mãe, desde o Rei ao Escravo, a todos fez iguais, a todos livres. (...) Entre os homens, dominarem os Brancos aos Pretos é força, e não razão ou natureza.”
São estas palavras de um escravocrata eugenista?
O Padre Antônio Vieira foi cancelado. Imagino que o passo seguinte será apagar seu nome dos livros escolares, em nome do amor e da defesa da democracia
Vivemos mesmo tempos assombrosos. Eu ia dizer que deveria ser desnecessário explicar o óbvio, mas já passamos deste ponto. Mesmo explicar já se tornou inútil, porque aqui, como em inúmeros outros casos, não se está debatendo com indivíduos, mas com uma agenda, e com agendas não há diálogo. Todo argumento contrário à agenda corre o risco de ser distorcido e transformado ele próprio em objeto de ódio e desqualificação pelos autodeclarados juízes da humanidade.
Ora, Vieira foi um homem do seu tempo, e vale lembrar que no século 17 inexistiam os conceitos de fascismo e de direita e esquerda. Por sua vez, a relação de Vieira com os escravos africanos já foi exaustivamente investigada, e a conclusão de todos os estudiosos sérios foi a óbvia: é hipocrisia, má-fé e desonestidade intelectual julgar alguém que viveu no mundo do século 17, quando não existia sequer a ideia de abolicionismo (que só surgiria no final do século 18, na Europa), com critérios e valores do século 21.
Se for assim, não restará ninguém para contar a História (mas talvez o objetivo seja este mesmo). Porque, basicamente, todas as pessoas que viveram no Brasil do século 17 conviveram com escravidão, que era um fator estruturante da economia e da sociedade da época: seriam todos perversos, fascistas e genocidas de extrema-direita?
O cronocentrismo, a ignorância deliberada de toda e qualquer contextualização para se implementar uma agenda, é apenas uma perversão conveniente da História.
Cito a seguir um dos autores que já se debruçaram sobre o tema: o historiador português João Pedro Marques. Resenhando “Cada um é da cor do seu coração – Negros, ameríndios e a questão da escravatura em Vieira”, ele escreveu, em 2018:
"A primeira coisa que é preciso perceber é que no século 18, com raríssimas excepções, as pessoas em toda a parte do mundo, até mesmo em África e entre os africanos, aceitavam a escravatura. Diz-se que os próprios escravos negros a rejeitavam, o que é uma ideia muito romântica e aparentemente muito lógica, mas que tem o grande inconveniente de ser falsa. Muitos dos escravos que se revoltavam e fugiam, e que conseguiam, assim, atingir a liberdade, escravizavam outras pessoas, ou seja, tornavam-se, por sua vez, senhores ou traficantes de escravos.
“Foi assim no famoso quilombo de Palmares, foi assim entre os escravos revoltosos da região de Baçorá, no atual Iraque, foi, inclusive, assim, com alguns dos líderes da grande revolta de São Domingos (futuro Haiti) e em muitos outros casos historicamente documentados. Antes da última metade do século 18 não havia abolicionistas nem na Europa nem em nenhuma outra parte do mundo. Apenas algumas, poucas, vozes que criticavam certas modalidades do tráfico de pessoas ou certas perversões e crueldades na relação dos senhores com os seus escravos.”
“Vieira arrepiava-se com a dureza e iniquidade do tratamento infligido aos escravos. Entristecia-se com a visão dos navios que chegavam de África carregados de centenas de negros. Revoltava-se com o contraste entre a humildade do pobre escravo africano e a soberba e opulência do seu senhor. Mas esses sentimentos eram amortecidos pela convicção profunda de que essa situação, aparentemente iníqua, obedecia a um propósito divino oculto.
“Vieira era um homem do Seiscentos, um homem da Igreja, que vivia num mundo regido pela Vontade de Deus. Acreditava que todas as coisas tinham uma razão de ser no âmbito dessa Vontade. Acreditava firme e sinceramente na dualidade corpo/alma, e achava, à maneira de Sêneca e de outros filósofos (que Vieira explicitamente cita), que o que interessava verdadeiramente era a libertação e a salvação das almas, não a dos corpos.
“A importância do estado de escravidão era, por isso, muito relativa. Vieira não tinha a nossa noção moderna de escravatura nem, acrescente-se, a nossa noção de liberdade. Essas noções estão inter-relacionadas, não são imutáveis e têm, como todas as outras coisas, uma história. Seria o padre Vieira um defensor da escravatura dos africanos? A resposta, depois do que ficou exposto, é claramente não. Aceitar ou tolerar não são sinônimos de defender ou promover.
“Imagine-se a viver em 1650 no Brasil, em São Salvador. Suponha que é um homem do clero e que, da janela do seu quarto ou da porta da sua igreja, vê chegar regularmente os navios que vêm da costa de África cheios de escravos negros. Não se esqueça de que vive em 1650, um tempo em que, na esteira de Santo Agostinho e de outros Padres da Igreja, ainda se vê a escravidão como o resultado de guerra justa, uma consequência do pecado e uma forma de civilizar os pagãos. Acha, sinceramente, que teria uma visão muito diferente da do padre Vieira?
“Eu faço esta pergunta às pessoas razoáveis, não aos que projetam no passado as suas mal informadas e mal alinhavadas ideias e acusam Vieira e outros antigos portugueses de mil erros e crueldades. Essas pessoas têm a prosápia dos que estão convencidos de que, se tivessem vivido no século 18, teriam certamente acabado com o tráfico negreiro e com todas as injustiças do mundo. É fácil a estes cavaleiros e cavaleiras ‘do bem’ falar assim, numa altura em que o problema já está, felizmente, resolvido. Se tivessem vivido no tempo de Vieira a sua prosápia fiaria mais fino.
“Isso mostra bem a estupidez de aplicar, de forma mecânica, esquemas mentais e grelhas de questionário do século 21 a homens e situações do século 17 Estamos perante um mundo muito diferente do nosso, e a tradução de um para o outro não é instantânea nem simples nem linear. Quem não entender essa verdade elementar não entenderá o passado nem o que condicionava e motivava as pessoas que nele viveram. Sabe-se que há muita gente que não está interessada em compreender coisíssima nenhuma, apenas em condenar e apedrejar.”
O projeto de lei que resultará na remoção do busto de Vieira foi aprovado em outubro. Segundo a reportagem da Folha de S.Paulo, o prefeito Eduardo Paes se omitiu: não sancionou nem vetou o texto enviado pela Câmara. Por conta disso, a lei foi promulgada após expirar o prazo de 15 dias úteis previsto para decisão do chefe do Executivo municipal.
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