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O estranho caso da mulher que era três homens
| Foto: Divulgação

“Carmen Mola (Madri, 1973) é professora universitária. Vive em Madri com seu marido e seus três filhos. ‘La novia gitana’ é seu primeiro romance.”

Essa breve biografia acompanhava os originais de um romance policial enviados à editora Alfaguara em setembro de 2017. Protagonizado pela detetive Elena Blanco, o livro foi imediatamente publicado e fez muito sucesso, já tendo sido traduzido em 11 idiomas. Mas a autora, fazendo a linha reclusa, sempre se recusou a dar entrevistas presenciais ou a participar da campanha de lançamento de seus livros.

Nos anos seguintes, Carmen Mola escreveu mais dois romances exitosos, que entraram nas listas de mais vendidos na Espanha, com mais de 400.000 exemplares vendidos ao todo: “La red púrpura” e “La nena”. Pelo impacto de suas tramas e por sua aversão a aparecer em público, a escritora passou a ser chamada de “Elena Ferrante espanhola”.

Pois bem, na sexta-feira passada, ocorreu a cerimônia de entrega do Prêmio Planeta, de 1 milhão de euros – cuja vencedora em 2021 foi, justamente, Carmen Mola, por seu quarto romance, “La bestia”. Para se ter uma ideia da importância do prêmio, estavam na plateia o rei e a rainha da Espanha, Felipe e Letizia.

Mas, em uma reviravolta digna dos melhores romances policiais, quem subiu ao palco para receber o prêmio foram três homens:  Jorge Díaz, Agustín Martínez e Antonio Mercero.

Carmen Mola na cerimônia de entrega do Prêmio Planeta
Carmen Mola na cerimônia de entrega do Prêmio Planeta

Isso mesmo, Carmen Mola era um pseudônimo. A escritora é, na verdade, três homens.

Por essa ninguém esperava. Muito menos em uma época de lacração non-stop, na qual bandeiras identitárias importam mais que o mérito, o desempenho e o talento. E as reações à surpresa comprovam isso.

A escritora feminista e diretora do Instituto da Mulher – que recomendava os livros de Carmen Mola como obras feministas – ficou indignada: “Esses caras passaram anos usando um perfil falso para atrair leitores e jornalistas. Golpistas!”.

Uma rede de livrarias de Madri, Mujeres y Compañía, foi além: recolheu das estantes os livros de Carmen Mola. Censura do bem.

Nas redes sociais, choveram ataques de “ódio do bem” ao trio de escritores, devidamente cancelados.

O episódio é revelador da epidemia de sociopatia que contagiou o planeta. Uma obra literária não vale pelo que é, mas pelo gênero de seu autor e pelo seu potencial de ser instrumentalizado pela guerra de narrativas do fascismo identitário.

O que Díaz, Martínez e Mercero fizeram foi, como dizia o Capitão Nascimento, usar o sistema contra o sistema. Como homens brancos e heterossexuais, eles sabiam que suas carreiras como escritores seriam, seguramente, bem mais difíceis, então adotaram o pseudônimo de uma mulher. Deu certo. Daí a revolta de quem se sentiu enganado.

O que Díaz, Martínez e Mercero fizeram foi, como dizia o Capitão Nascimento, usar o sistema contra o sistema

Basta um pouco de honestidade intelectual para admitir que das duas uma: ou uma obra literária vale pelo que é, independente do sexo do autor – e durante muitas décadas esta foi uma reivindicação justíssima das feministas – ou a avaliação da obra está subordinada ao sexo do autor e à sua potencial instrumentalização como bandeira ideológica. Não existe outra possibilidade.

Fato: se o sexo de um escritor faz diferença, a luta não é mais por igualdade; é por privilégios. Não é mais por uma sociedade de direitos realmente iguais, na qual não faça diferença pertencer a determinado sexo, orientação de gênero ou etnia; é por uma sociedade na qual os direitos e recompensas são diferentes, com base no sexo, orientação de gênero ou etnia. A mensagem implícita é: “Direitos iguais uma ova! Eu quero ter mais direitos que você! E estou moralmente autorizado a perseguir e esfolar quem discordar de mim!”

Voltando ao caso Carmen Mola: pseudônimos fazem parte da História da literatura, bastando citar aqui o caso da escritora do século 19 Mary Ann Evans, que assinava seus romances como George Eliot, um pseudônimo masculino. As irmãs Emilly, Charlotte e Anne Brontë também usaram pseudôminos masculinos. Mais recentemente, J.K.Rowling, a autora de “Harry Potter”, também (se bem que esta já foi cancelada, por afirmar que existem diferenças entre mulheres e mulheres trans). E daí?

Mas parece que, em breve, antes de um escritor adotar um pseudônimo, ele precisará consultar o comitê de diversidade das redes sociais. E este comitê vai proibir por decreto não apenas adotar um pseudônimo de outro gênero, mas também adotar qualquer nome ou sobrenome que sugira algum tipo de apropriação cultural (um pseudônimo de sonoridade asiática ou indígena, por exemplo).

Também será obrigatório preencher um formulário optando por uma entre 47 opções de orientação sexual – e você já sabe que, se escolher homem heterossexual (ou “cis”), suas chances se aprovação serão muito reduzidas.

O mundo está ficando cada vez mais chato. E ainda vai piorar.

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