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A cada dia que passa, fica mais claro que o apreço da grande mídia pelas regras da democracia é apenas um recurso de retórica. Nesta semana, um colunista da “Folha de S.Paulo” escreveu um artigo propondo... um golpe militar para derrubar o presidente. Foi publicado na sexta-feira, no site do jornal, com o título “Nata militar poderia, sim, derrubar Bolsonaro, mas precisaria ter coragem”. No dia seguinte, o artigo saiu na edição impressa, com outro título, mas o mesmo conteúdo.

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E adivinhem a quem o articulista comparou Bolsonaro, classificado como “o Capetão” e “o assassino em massa do Planalto”? Isso mesmo, Adolf Hitler. Porque, como se sabe, o presidente brasileiro é um genocida que criou campos de concentração, prega o extermínio dos judeus em câmaras de gás e planeja fazer um acordo com a Rússia para invadir e escravizar a Europa. Ora, no momento em que a comparação com Hitler é o melhor argumento que se tem nas mãos, parece recomendável refletir um pouco antes de escrever.

Ressalte-se que o texto não propõe um processo constitucional de afastamento do presidente, via impeachment, dentro das regras do Estado de Direito – como, aliás, aconteceu com Fernando Collor e Dilma Rousseff. Não, isso demora muito. Propôs um golpe mesmo, daqueles à moda antiga, que a esquerda gosta de associar à direita: derrubar pela força das armas, na base da grosseria, o presidente eleito com quase 58 milhões de votos. Tudo em defesa da democracia (como todos os golpes, né?).

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Curiosamente, o texto sugere que, consumado o golpe militar, seja oferecida ao presidente a oportunidade de embarcar em um avião da FAB para... Israel; caso contrário, ele será preso, processado e julgado por genocídio. Além da democrática prisão antes do julgamento, o destino escolhido me deixou confuso: na cabeça do articulista, Hitler e Israel estariam do mesmo lado? (No último parágrafo, o articulista faz uma ressalva, defendendo que o golpe militar deve ser uma resposta a uma hipotética ordem do presidente para fechar o Congresso. Oi? Quer dizer que o artigo inteiro, defendendo o golpe, parte da premissa de uma ordem que não existe?)

Fazer apologia a golpe militar, vejam vocês, agora é não apenas permitido, mas considerado algo democrático e até bonitinho. Coisa de gente “do bem”. Não chega a surpreender. Vale lembrar que o mesmo jornal publicou, em julho do ano passado, um artigo com o título “Por que desejo que Bolsonaro morra”. Frustrado o desejo fúnebre de que aquele que se odeia morra – de facada ou de Covid-19, tanto faz – passa-se a desejar que um general bem truculento e “corajoso”, com valores de “pátria” e “civismo”, realize a fantasia, o sonho molhado de eliminar sumariamente o presidente eleito, para que o Brasil volte a ser a maravilha que era na época do Petrolão. Freud explica.

O vírus não tem ideologia: na Bahia, no Ceará e no Maranhão, que têm governadores de esquerda, a Covid mata tanto quanto em estados governados pela direita. Tem alguém defendendo golpe contra esses governadores?

A isso se reduziu a capacidade de análise dos intelectuais que escrevem na grande imprensa? Porque comparar o presidente a Hitler, desejar abertamente a sua morte ou fazer, sem qualquer constrangimento, apologia a golpe militar são exemplos extremos e caricatos, mas de forma alguma isolados, do ambiente de permanente sabotagem que a mídia cultiva, trabalhando diuturnamente para impedir o governo de governar. Nada de bom pode vir daí.

Artigos assim, evidentemente, só servem para ilustrar o abismo crescente cavado entre aqueles que detêm o monopólio da fala na grande mídia e o Brasil real. O inconformismo com a derrota nas urnas e a teimosia em esquecer que o presidente foi eleito por quase 58 milhões de brasileiros, em sua imensa maioria pobres e trabalhadores (ou Bolsonaro foi eleito pelas elites?) faz com que as máscaras caiam: respeitar a vontade do eleitor só vale quando o eleitor tem a mesma vontade que eu. No exato momento em que ele vota em um candidato de quem não gosto, passa a ser um imbecil e fascista. Onde está a intolerância?

É certo que, sobretudo na gestão da pandemia, o governo acumula falhas e deve ser submetido a críticas e questionamentos – como, aliás, também devem ser submetidos a críticas os governadores e prefeitos, que detêm, em última instância, o poder de decisão sobre como combater a Covid. Críticas também devem ser feitas, aliás, à parcela da sociedade que se aglomera em festas clandestinas e depois joga no colo do governo a responsabilidade pelo aumento de casos e mortes.

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Ora, é preciso elevar um pouco o nível do debate. Nem o presidente, nem os governadores, nem os prefeitos, sejam de que partido forem, desejam que ninguém morra de Covid, até porque todos perdem com o agravamento da situação. A verdade é que, desde o início da pandemia, governos de esquerda e direita estão agindo na base da tentativa e erro, fazendo o que podem para enfrentar uma tragédia imprevisível e de proporções inimagináveis.

O vírus não tem ideologia: na Bahia, no Ceará e no Maranhão, que têm governos de esquerda, a Covid mata tanto quanto em estados governados pela direita. Tem alguém defendendo golpe contra esses governadores? Tem alguém chamando esses governadores de genocidas? Tem alguém desejando a sua morte? Acho que não.

Insistir na politização da pandemia é torcer pelo caos e pregar para convertidos; não contribui em nada para melhorar a situação do país, além de comprometer ainda mais a credibilidade da imprensa. Já temos problemas demais para enfrentar, golpismo midiático é tudo aquilo de que o Brasil não precisa – mesmo que os golpistas se considerem “do bem”.