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O melhor do Brasil é o brasileiro. O pior também
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Eu costumo sentir certo incômodo quando se aponta o dedo para pequenas espertezas do cotidiano para justificar grandes desvios e roubalheiras. Em anos recentes, essa prática foi muito utilizada para calar denúncias de esquemas corruptos bilionários. Na época do escândalo do Petrolão, por exemplo, militantes do PT interpelavam qualquer crítica com argumentos do tipo: “Se você já estacionou em lugar proibido, furou uma fila, usou carteirinha de estudante falsa para pagar meia-entrada ou soltou um pum no elevador, não pode reclamar da corrupção!”

Quem ousasse falar mal do governo era imediatamente constrangido a ficar quieto por uma tropa de MAVs (Militantes em Ambiente Virtual): “Como você tem coragem de reclamar de propinas de milhões de reais se compra produtos piratas, compartilha senha da Netflix e está com o condomínio atrasado? Que vergonha!”. Aliás, além de perseguir e massacrar adversários políticos e de promover assassinatos de reputação em série, os MAVs produziam fake news em escala industrial – mas, curiosamente, nunca melindraram os ministros do STF.

Nivelar desvios de bilhões de reais e pequenas fraquezas do cidadão comum é uma tática discursiva bastante eficaz, porque, evidentemente, a ética também deve pautar as pequenas decisões do dia-a-dia do cidadão, e não somente a conduta dos governos. O problema é que geralmente se usa essa tática para travar o debate, imobilizar as pessoas e silenciar qualquer crítica. Com o objetivo de desviar o foco do problema real, transfere-se a responsabilidade de governantes e empresários corruptos para toda a população.

Mesmo quando a intenção é boa, isto é, quando pessoas honestas chamam a atenção para a importância de se comportar eticamente nas pequenas coisas, a consequência é a mesma: imobilidade e silêncio. Ora, se o pobre coitado que não devolveu um troco errado é tão culpado pelas mazelas do país quanto o político e o empresário que se apropriam de fortunas em dinheiro público, melhor deixar quieto.

Mas adotar esse discurso é esquecer que, quando todos são culpados por tudo, na prática ninguém é culpado de nada. Não falo só dos casos de corrupção: quando o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, foi destruído por um incêndio, em vez de cobrar a apuração de responsabilidades e punição dos culpados, a sociedade e a mídia compraram e venderam a narrativa de que cada um de nós tinha sua parcela de responsabilidade – e tudo ficou por isso mesmo. A impunidade é a consequência lógica da relativização absoluta.

Pois bem, apesar do exposto acima, perdi mais um pouco da fé no Brasil ao ler uma notícia publicada esta semana: mais de 30% das famílias brasileira das classes A e B têm pelo menos um membro que solicitou o auxílio emergencial de R$ 600 – criado pelo Governo federal para aliviar o sofrimento dos mais pobres, dos trabalhadores informais e dos desempregados, que em muitos casos ficaram sem ter o que comer por causa da pandemia. Pior: cerca de 70% dos pedidos foram atendidos, porque, para burlar as regras do programa, essas pessoas omitiram a renda familiar no cadastro do site da Caixa.

Não é a primeira vez que isso acontece, nem será a última: volta e meia aparecem denúncias de que bilhões de reais foram roubados do Bolsa Família por pessoas que não reuniam os requisitos exigidos, mas sacavam o benefício assim mesmo. A triste realidade é que, onde houver dinheiro público, sempre haverá brasileiros dispostos a surrupiá-lo – até mesmo em meio a uma tragédia como a atual pandemia. Basta pensar nos respiradores e equipamentos médicos superfaturados, nos hospitais de campanha que não ficam prontos e em outros escândalos que se multiplicam e logo serão esquecidos, enquanto milhares de pessoas adoecem e morrem.

Ainda vigora no nosso país a Lei de Gerson, que autoriza todo brasileiro a obter vantagens de forma indevida, sem dar a mínima para questões éticas ou morais. Ela exprime traços bastante característicos e nada lisonjeiros do caráter nacional, sobretudo a tendência disseminada a desrespeitar regras para se dar bem. Sua origem foi uma campanha publicitária de 1976, feita para uma marca de cigarro: o protagonista era o jogador de futebol Gérson, que dizia: “Gosto de levar vantagem em tudo, certo? Leve vantagem você também”.

A intenção do comercial talvez não fosse fazer o elogio da malandragem, e de certa forma é até injusto que o craque da seleção brasileira campeã mundial em 70 tenha ficado associado a uma imagem de defesa do oportunismo, da falta de escrúpulos e de comportamentos pouco éticos. Mas o fato é que, se existe uma lei que pegou e funciona no Brasil, é a Lei de Gérson.

Enquanto milhares de heróis anônimos colocam a vida em risco, oportunistas fraudam o programa de auxílio para levar vantagem, não enxergando mal algum em embolsar dinheiro destinado aos pobres

Enquanto milhares de médicos, enfermeiros e outros profissionais da saúde colocam a vida em risco, uma multidão de oportunistas frauda o programa de auxílio emergencial para levar vantagem, não enxergando mal algum em embolsar dinheiro destinado aos pobres. O mais grave é que muitas dessas pessoas – esposas de empresários, filhos de família de classe média alta, aposentados bem de vida – sequer admitem que estão sendo desonestas:

Ain... Eu sou da classe B, mas perdi meu emprego, sempre paguei impostos e tenho direito...” Não, você não tem. O programa não foi feito para você. Leia as regras. “Ain... A situação ficou difícil para mim também, e não estou cometendo nenhuma fraude...” Sim, você está. “Ain... Todo mundo faz, todos querem o melhor para si, que mal há nisso?” Então talvez seja melhor assumirmos logo que somos uma nação de espertos, pois não vemos mal nenhum em embolsar dinheiro destinado aos miseráveis. Certo?

Pessoas assim fazem pensar que o Brasil não tem a menor possibilidade de dar certo, independente de quem ou qual partido estiver no poder. Diante de justificativas como as listadas acima, eu me rendo: quem é da classe A ou B e frauda o programa para receber o auxílio emergencial de R$ 600 não pode mesmo reclamar de corrupção dos governantes.

Outra campanha publicitária, bem mais recente que a da Lei de Gerson, afirmava que o melhor do Brasil é o brasileiro. Isso se aplica, seguramente, aos milhares de heróis anônimos da área da saúde que, frequentemente trabalhando em condições precárias, colocam todos os dias a vida em risco para salvar a do próximo. Mas o pior também é. A pandemia do coronavírus  está revelando o nosso pior e o nosso melhor.

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