| Foto: Reprodução
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A capa anunciada da próxima edição americana da revista “Vogue” traz a fotografia de uma mulher bonita, elegante, glamurosa, refinada, poderosa. Ela aparece sentada de forma displicente nos degraus de mármore de um prédio de arquitetura clássica, que também emana poder.

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Embora feita para parecer “natural”, tudo na fotografia é minimamente calculado: do cenário severamente formal ao figurino despojado-chic da modelo; do ângulo das pernas semiabertas ao ligeiro desalinho dos cabelos bem hidratados e esvoaçantes; do decote sutil ao olhar desafiador e, ao mesmo tempo, aflito.

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Quem assina as fotografias da capa e do estiloso ensaio do miolo da revista é Anne Leibowitz, uma fotógrafa de celebridades que é, ela própria, uma celebridade – e que também ficou conhecida por ter sido a última namorada da intelectual Susan Sontag, outra celebridade por sua vez.

Até aqui, tudo bastante coerente com a proposta da “Vogue”, uma revista voltada à beleza, à moda, aos desfiles de alta costura e ao “lifestyle” dos ricos e famosos. Uma versão mais sofisticada da revista “Caras”, digamos assim.

Mas um detalhe da fotografia causa estranheza: os sacos de areia empilhados, como barricadas, entre as duas colunas de mármore atrás da modelo. Os sacos, aliás, explicam o seu olhar aflito: eles estão ali porque a imagem foi feita em Kiev, na Ucrânia, no subsolo do palácio presidencial de um país em guerra.

Sim, a mulher da foto é a primeira-dama Olena Zelenska, estrela da reportagem intitulada “Um retrato de coragem”, na qual ela fala sobre seu casamento, sobre seu estilo, sobre a vida dura de primeira-dama e, já ia esquecendo, sobre a tragédia da guerra que destrói o seu país desde a invasão das tropas russas. “É estranho falar sobre extermínio ucraniano e moda ucraniana na mesma conversa”, admite Rachel Donadio, a jornalista que assina o texto. E é mesmo.

“O seu rosto luminoso e os seus olhos castanhos-esverdeados parecem captar todo o espectro de emoções que hoje percorrem a Ucrânia: tristeza profunda, súbitas incursões de humor negro, recordações de um passado mais seguro e feliz e o orgulho nacional”, escreve Rachel.  “Zelenska confessa o que inspira a ela e aos seus compatriotas ucranianos: 'Estamos ansiosos pela vitória. Não temos dúvidas de que prevaleceremos. E é isso que nos faz continuar'".

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Outra fotografia mostra Olena com a mão crispada, segurando a gola de um elegante sobretudo, seguramente assinado por algum estilista de Paris ou Milão, ou por alguma estrela em ascensão do mundinho da moda de Kiev. Ao fundo, os restos mortais de um avião abatido, pintado com as cores da Ucrânia, estão cheios de marcas de tiros.

Embora cercada por soldados do sexo feminino (é claro), em pesado uniforme de guerra e atitude cool, Olena parece flutuar, alheia ao cenário, o olhar perdido ao longe, como se estivesse no estúdio fotográfico de uma agência de publicidade, posando para a campanha de alguma marca de luxo, ou passeando pelo set de alguma série de guerra da Netflix.

A “Vogue” também traz fotografias que mostram Olena com o marido, Volodymyr Zelensky – que, já repararam?, só tira fotos usando camisetas justinhas, mesmo nas situações mais formais.

Volodymyr também dá seu depoimento à “Vogue”, falando sobre Olena: “Ela tem uma personalidade forte, para começar. E essa guerra... Bem, qualquer guerra provavelmente trará qualidades que você nunca imaginou ter. (...) Claro que ela é meu amor. Mas ela é minha maior amiga. (...) Olena é realmente minha melhor amiga. Ela também é patriota e ama profundamente a Ucrânia. É verdade. E ela é uma excelente mãe”. (Quem não chorar diante desse depoimento já morreu por dentro.)

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No final da reportagem aparecem os créditos: “Styling: Julie Pelipas; Assistentes de styling: Anastasiia Popadianets, Maria Hitcher; Maquiagem: Svetlana Rymakova; Cabelo: Igor Lomov; Produção: Maryna Sandugey-Shyshkina; Line producer: Vlad Mykhnyuk, Kasia Krychowska”.

Tudo – as declarações, as fotografias, os créditos – parece fazer parte de alguma campanha publicitária, e de certa forma é isso mesmo: só falta entender o que estão tentando vender. O objetivo talvez seja manter a Ucrânia sob os holofotes, quando já é claro o cansaço midiático da guerra, e ao mesmo tempo promover a imagem do descolado casal presidencial.

Mas, como era previsível, a campanha não deu muito certo. Nas redes sociais, choveram críticas ao fato de a “Vogue” e o casal Zelensky romantizarem, espetacularizarem e a glamurizarem a guerra que há meses causa sofrimento e perdas humanas em escala industrial em seu país.

Um internauta estranhou o fato de Olena “sensualizar” em uma revista de moda ao mesmo tempo em que implora por armas e ajuda financeira aos Estados Unidos. Outro escreveu: “Enquanto estiver na guerra, faça uma pose”. E não faltaram reações indignadas e irônicas, especialmente nos Estados Unidos:

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(Aliás, o apoio americano ao governo ucraniano já está causando desconforto mesmo entre membros do Partido Democrata, como demonstra este artigo recente da revista “Newsweek”.)

Para completar, apareceu um vídeo com o “making of”  da reportagem da "Vogue", mostrando Volodymyr e Olena dando gargalhadas nos bastidores da entrevista. Não pegou bem. Antes de virarem presidente e primeira-dama da Ucrânia, ele era comediante, e ela era roteirista. Talvez continuem sendo.