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“Projeto nacional – O dever da esperança”, de Ciro Gomes, pode ser entendido como uma peça antecipada de campanha para a eleição de 2022. Com prefácio do cientista político Roberto Mangabeira Unger, em vários capítulos o livro apresenta praticamente um plano de governo, sinalizando com que figurino esse político camaleônico, que já transitou por partidos com propostas bastante diferentes (PMDB, PSDB, PPS, PSB, PDS, PROS e PDT), pretende se apresentar aos eleitores daqui a dois anos. Basicamente, Ciro se descreve como um herdeiro do trabalhismo getulista e do nacional-desenvolvimentismo, mais à esquerda que à direita, distanciado do lulopetismo e crítico radical do que chama de projeto neoliberal de destruição do país, que estaria em curso desde o segundo e inacabado mandato de Dilma Rousseff.

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Em seu prefácio, Mangabeira Unger afirma que Ciro Gomes trata os brasileiros como “agentes a empoderar”, e não como “beneficiários a cooptar”, como é costumeiro na política brasileira. Ele estabelece um contraste entre as propostas de Ciro e os dois ideários que teriam predominado no Brasil nas últimas décadas: de um lado, “fiscalismo financista, liberalismo e ortodoxia econômica e redução do Estado”, que ele associa a Collor, FHC, Michel Temer e Jair Bolsonaro; de outro, o “nacional-consumismo” dos governos Lula e do primeiro mandato de Dilma. No segundo caso, admite, o ideário serviu de base a um sistema geral de cooptação (“dos pobres pelas transferências sociais, das corporações pelos direitos adquiridos, dos graúdos pelos favores tributários e pelo crédito subsidiado e dos rentistas pelos juros desnecessários e irresponsáveis”) que multiplicou as oportunidades para a corrupção “nos acertos entre as elites de poder e de dinheiro”.

Feito no prefácio, esse diagnóstico do projeto lulopetista é uma das boas coisas do livro “Projeto nacional”. É possível listar outras, como a crítica que Ciro faz ao “pobrismo”, definido como a primazia dada a transferências compensatórias, que não alteram os mecanismos geradores de desigualdade. Ou o ataque à cultura do consumismo irracional, que induz as pessoas a entrar em uma espiral de consumo para a qual não têm recursos, o que gera frustração, infelicidade, revolta e a crença de que são fracassadas (é o fenômeno da anomia, embora Ciro não usa a palavra). Alimentada pela mídia, esta é de fato uma das patologias da nossa sociedade: a associação da felicidade a valores puramente materiais, da realização pessoal a conquistas materiais que muitas pessoas simplesmente não têm como bancar (pelo menos não de forma honesta), e isso acaba funcionando como um incentivo à ilegalidade.

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Ciro também faz análises interessantes e bem fundamentadas da trajetória da economia brasileira nas últimas décadas, particularmente das razões que limitaram os surtos de crescimento do país a “voos de galinha”. Seu exame do rentismo também parece correto, bem como as comparações feitas com outros países, como a Coreia do Sul, que conseguiram superar os desafios nos quais ainda estamos enredados.

Isso posto, vamos ao que o livro tem de ruim:

- Reiteradamente, Ciro dirige ofensas ao presidente Jair Bolsonaro, descrito como “um personagem inqualificável, que aposta no caos social” – agredindo, por extensão, os seus 58 milhões de eleitores, a maioria deles brasileiros humildes. Nesses momentos ficam evidentes as contradições do autor, que afirma pregar o diálogo fraternal, a superação da polarização política e a pacificação dos brasileiros, mas desqualifica mais da metade do eleitorado nacional. Até por uma questão de estratégia, não se deve agredir aqueles a quem se pretende chamar para o diálogo, mas Ciro trata como imbecis o presidente e todos aqueles que votaram nele. Parece um mau começo de campanha;

- De forma inacreditável, nesta altura do campeonato, Ciro se refere ao impeachment de Dilma Rousseff como um “golpe de Estado que alçou ao poder um governo ilegítimo, (...) com uma agenda de destruição do Estado”, um “atentado contra a democracia”. De novo, esta parece ser uma estratégia equivocada. O que Ciro está fazendo é chamar de golpistas os milhões de brasileiros que foram as ruas pedir a saída constitucional de uma presidente que estava conduzindo o país para o abismo. Ou seja, não satisfeito em provocar a antipatia de todos os eleitores de Bolsonaro, Ciro dispensa também o apoio de todos os brasileiros que foram favoráveis ao impeachment – e, obviamente, não admitem ser chamados de golpistas. Eu, pessoalmente, jamais votarei em um candidato que me chama de golpista, por melhor que seja a sua plataforma, e acredito que não estou sozinho;

Ciro Gomes parece não ter feito a si mesmo uma pergunta fundamental: que leitores/eleitores ele queria alcançar?

- Ciro não para aí: além de desqualificar os 58 milhões de eleitores que votaram em Bolsonaro no segundo turno em 2018 e mais alguns milhões, que não votaram em Bolsonaro mas apoiaram o impeachment, ele ataca também o eleitorado tucano, ao classificar os governos de Fernando Henrique Cardoso como “um desastre”;

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- Por princípio e convicção, Ciro defende um “Estado empreendedor”, o que é direito seu. Mas, para uma imensa parcela da sociedade, já ficaram mais que demonstradas a ineficiência e a incompetência do Estado para alocar recursos de forma eficiente e honesta – sobretudo no Brasil, onde a burocracia e a corrupção costumam se retroalimentar;

- Na mesma linha, Ciro atribui todas as mazelas atuais do país ao “neoliberalismo”, ignorando a salgada conta deixada pelos 14 anos do PT no poder. Além disso, considerar que em algum momento existiu de fato um governo liberal ou neoliberal no Brasil é fazer pouco da inteligência do leitor: mesmo as tentativas mais modestas de se diminuir o tamanho paquidérmico do Estado brasileiro sempre esbarraram – e continuam esbarrando – na resistência feroz de todos os grupos beneficiados por um Estado forte, dos grandes grupos econômicos aos estratos mais vulneráveis da população, uns e outros cooptados por um projeto de perpetuação no poder a qualquer preço, que deu no que deu;

Um trecho particularmente impressionante é o seguinte: “Impostos na verdade não são confiscos, mas restituições ao Estado da riqueza imensa e livremente distribuída que ele gera. (...) O Estado é gerador de riqueza, enorme, e deve ser ressarcido por aqueles que usufruem dessa riqueza”. Ora, o Estado não gera riqueza alguma; ao contrário, é o Estado quem toma compulsoriamente dos empresários e trabalhadores parte da riqueza por eles produzida e a restitui (ou deveria restituir) na forma de serviços públicos, como saúde e educação de qualidade – coisa que não faz.

Em outro trecho revelador, ao examinar os conceitos de direita e esquerda, Ciro escreve o seguinte: “Para a esquerda, (...) ‘direita’ passa a designar aqueles que querem conservar ou até ampliar a desigualdade”. Ora, esta é uma definição ofensiva e mal intencionada da direita, que aposta no erro primário (ou será estratégia?) de dividir o país entre o bem (a esquerda) e o mal (a direita). Se a definição estivesse correta, 99% das pessoas seriam de esquerda, já que quase ninguém, em sã consciência, deseja o aumento da miséria e da desigualdade. Uma premissa básica do debate político é admitir que os fins dos seus adversários também são legítimos, que eles também buscam promover a prosperidade e o bem-estar da sociedade; o que varia são os meios: maior ênfase na liberdade ou na igualdade e a crença na eficiência de um Estado maior ou menor. Mas convém lembrar que tanto o comunismo quanto o Nazismo e o Fascismo apostaram no agigantamento do Estado; todos resultaram em tragédias humanitárias, com um custo inestimável em sofrimento e vidas humanas.

De qualquer forma, tentando se definir no gradiente esquerda-direita, Ciro escreve: “Do ponto de vista da direita, sou uma pessoa de centro” – aqui ele simplesmente se equivoca: do ponto de vista da direita, ele é de esquerda – “que não defende nem o Estado máximo nem o Estado mínimo, mas o Estado necessário”. Involuntariamente, Ciro dá razão a ninguém menos que Margaret Thatcher, campeão do neoliberalismo, que pregou: “Mais Estado onde faltar Estado, menos Estado onde sobrar Estado”.

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Por tudo isso, por meritória que seja sua reflexão em vários capítulos do livro, sobretudo aqueles voltados à análise econômica, Ciro Gomes parece não ter feito a si mesmo uma pergunta fundamental antes de escrever e publicar “Projeto nacional”: que leitores/eleitores ele queria alcançar? Seria de se esperar que, até por estratégia, ele de fato estendesse a mão a todos os brasileiros, tentando atrair ao menos a boa vontade dos eleitores conservadores ou de direita/centro-direita e das camadas populares que apoiam Bolsonaro. Mas estes são desqualificados, na medida em que Ciro agride o candidato em quem eles votaram. Já os leitores/eleitores de esquerda, mesmo sendo tratados com mais gentileza, dificilmente gostarão das críticas, ainda que amaciadas, aos governos do PT. Sobram aqueles que já gostam de Ciro Gomes e votariam nele de qualquer maneira, mas neste caso o livro acaba se tornando ineficaz, ao pregar apenas para os já convertidos – o que nunca foi uma estratégia eleitoral eficaz.

Projeto nacional – O dever da esperança, de Ciro Gomes. Editora Leya, 275 pgs. R$ 49,90