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Estão tentando vender a dosimetria como um símbolo de racionalidade jurídica: a aplicação meticulosa de cálculos punitivos seria o instrumento “técnico” capaz de garantir que as penas atribuídas a réus não resultassem de caprichos arbitrários, politicamente enviesados ou claramente vingativos, mas de critérios objetivos, previsíveis e proporcionais.
Apesar de sua relevância no direito penal, imaginar que a dosimetria pacificará um país marcado pela polarização é uma ilusão. Proposto como alternativa à anistia ampla defendida por bolsonaristas, o PL da Dosimetria, se levado adiante, corre o risco de aprofundar ainda mais a divisão do país, ao ignorar questões estruturais que alimentam a crise.
Apresento a seguir 10 motivos pelos quais a dosimetria NÃO pacificará a sociedade brasileira:
1. A neutralidade da dosimetria é uma ilusão
A dosimetria é apresentada como uma operação matemática imparcial. Mas a ideia de neutralidade é ilusória: a própria definição de atenuantes e agravantes depende de interpretações subjetivas.
Ao aplicar critérios “técnicos” a uma decisão, o juiz continua fazendo escolhas políticas e até morais. Se a dosimetria é permeada por valores subjetivos, não é capaz de eliminar conflitos; servirá apenas para dar um verniz de racionalidade a decisões contestáveis.
2. A polarização política continuará intacta
Mesmo com a redução das penas, metade da população continuará vendo as condenações do STF como perseguição injusta, e a outra metade como justiça contra golpistas.
Ao reduzir penas sem conceder anistia, o PL da Dosimetria não resolverá nada. Aliás, antes mesmo de sua eventual aprovação, o projeto já é rejeitado tanto por bolsonaristas, que o consideram insuficiente, quanto por lulopetistas, que o veem como leniente.
3. O povo perdeu a confiança nas instituições
Mesmo que a dosimetria fosse aplicada com perfeição técnica, não haveria pacificação, por uma razão muito simples: grande parte da população já não confia no Judiciário e em outras instituições. Essa parcela da sociedade enxerga todas as decisões do STF e do Congresso Nacional como politizadas, corporativistas ou orientadas por interesses ocultos.
Sem confiança social, nenhuma dosimetria terá legitimidade para pacificar o país. No fim do dia, pouco importa se a pena foi construída a partir de cálculo técnico ou arbitrário: a opinião pública reage ao número final, comparando-o com expectativas de justiça ou vingança. A dosimetria jamais corresponderá ao senso popular de punição adequada.
4. O PL da Dosimetria ignora os abusos alegadamente cometidos pelo STF
O projeto de lei sequer aborda os excessos atribuídos ao STF, como inquéritos sem provas, relativização de garantias e violações constitucionais diversas. Para muitos brasileiros, a pacificação começaria por uma CPI sobre abuso de autoridade. Sem investigar o "inquérito do fim do mundo" ou a máquina de censura instalada no país, o PL da Dosimetria parece um remendo superficial.
5. A dosimetria pode aumentar o sentimento de arbitrariedade
Um sistema que a população não entende não pode ser fonte de pacificação. A dosimetria é uma operação sofisticada, sujeita a margens de interpretação, que pode alimentar a sensação de arbitrariedade entre as pessoas comuns.
O direito brasileiro é marcado por um cipoal de leis, portarias, súmulas e jurisprudências conflitantes: uma teia normativa caótica, na qual juízes podem fundamentar decisões opostas usando precedentes igualmente válidos. Nesse ambiente, a dosimetria reforça a percepção de que as penas são moldadas conforme a conveniência do intérprete.
Apesar das boas intenções declaradas, o PL da Dosimetria é um remendo legislativo que não corre o menor risco de dar certo
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6. O projeto de lei representa mais um acordão em um país exausto de acordões
O Brasil está cansado de negociações nos bastidores que atendem a uma agenda secreta, e não ao interesse público. Nascido de reuniões como a de Michel Temer com Aécio Neves e Paulinho da Força, o PL da Dosimetria cheira a mofo.
Protestos recentes já deixaram clara a rejeição pública a esses expedientes, que tendem a aumentar o ceticismo e a insatisfação da sociedade com o sistema que a governa.
7. O PL da Dosimetria corre o risco de ser declarado inconstitucional
Ministros do STF já sinalizaram que anistias ou ajustes amplos de penas podem ser inconstitucionais. Como a dosimetria interfere na prerrogativa judicial de calcular penas, pode ser barrada, criando um impasse.
Esse ambiente de incerteza deve prolongar o conflito entre poderes, com Congresso e Judiciário se desafiando mutuamente, aprofundando a crise institucional em vez de resolvê-la – e deixando o país em um limbo jurídico e político.
8. A dosimetria não acabará com os protestos nas ruas
Defensores do PL afirmam que ele acabaria com manifestações de rua, mas, na melhor das hipóteses, isso é puro otimismo. Bolsonaristas revoltados continuarão pressionando por uma anistia ampla, geral e irrestrita (tal como a defendida em 1979, com os papéis invertidos).
Movimentos políticos e militantes usarão o PL para reforçar narrativas. A pena recalculada por meio da dosimetria será lida como prova de que “a Justiça está com o povo” ou de que “o sistema está corrompido”. Em ambos os casos, será combustível para radicalizações.
9. O PL da Dosimetria não satisfaz os defensores da anistia
Bolsonaristas, incluindo familiares de Jair Bolsonaro, insistem em uma anistia ampla, geral e irrestrita. O eventual apoio de políticos de direita ao PL da Dosimetria será visto como traição. Isso pode gerar rebeliões internas no Congresso: sem atender às demandas extremas da direita, a dosimetria não desarma ninguém, apenas mantém vivo o confronto ideológico que divide o país.
10. O PL da Dosimetria ignora as lições da História recente
A História recente demonstra que ajustes parciais podem inflamar as ruas, mantendo o país em tensão permanente. Como “solução legislativa para pautas tóxicas”, o PL da Dosimetria evita olhar para frente, perpetuando ciclos de rancor.
Acordos passados, como os de Michel Temer para “pacificar” o país, levaram a mais instabilidade. Sem aprender com seus erros, o país arrisca repetir ciclos de crise, em vez de construir uma pacificação duradoura.
Em suma, apesar das boas intenções declaradas, o PL da Dosimetria é um remendo legislativo que não corre o menor risco de dar certo. Ao contrário, a dosimetria não pacifica: apenas inaugura mais um campo de batalha na guerra de narrativas que domina o país. Essa guerra não se origina da falta de cálculo matemático na atribuição de penas, mas de disputas ideológicas, instituições em crise e desconfiança generalizada da população.
O PL ignora a necessidade de enfrentar abusos institucionais e reafirmar compromissos democráticos, optando por soluções paliativas. Permanecerá a narrativa de mentiras de ambos os lados, impedindo que o Brasil supere as erosões de direitos e se redemocratize, como fez no pós-ditadura militar. A pacificação nacional não virá da frieza de uma fórmula jurídica, mas da reconstrução da confiança social nas instituições.




