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Luciano Trigo

Luciano Trigo

Tempos muito estranhos

Rumo ao marxismo neoliberal

(Foto: Luciano Trigo com ChatGPT)

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Outro dia me deparei com a expressão “marxismo neoliberal”. À primeira vista, é uma contradição em termos, já que a crítica radical ao capitalismo e a promessa de uma sociedade sem classes são dois pilares do marxismo, enquanto o neoliberalismo celebra o mercado e a propriedade privada. Parece estar em curso, no entanto, uma convergência improvável entre essas duas ideologias, incompatíveis por definição. É o que sugerem diversos acontecimentos recentes, no Brasil e no mundo.

Não me refiro aqui ao uso pejorativo da expressão, quando aplicada em tom de crítica a falsos marxistas (ou falsos neoliberais). Trata-se, estranhamente, de uma ferramenta de análise cada vez mais útil em um mundo no qual os discursos e práticas da esquerda e da direita se confundem.

O conceito de marxismo neoliberal vem ganhando tração na mídia e nos círculos acadêmicos, mas nem é um conceito tão novo. Já em 2009, logo depois da crise financeira que abalou o planeta, o ensaísta britânico Mark Fisher fez um diagnóstico pioneiro do fenômeno em seu livro “Realismo capitalista”.

Segundo Fisher, o capitalismo absorveu e neutralizou as ideias da esquerda, enquanto o marxismo se adaptou ao mercado, abandonando qualquer pretensão de mudanças estruturais na sociedade. A esquerda teria sido, nesse sentido, “domesticada”.

Diferentemente do seu antepassado, que tinha a pretensão de mudar o mundo, o marxismo neoliberal se limita hoje ao discurso. É muito blablablá virtuoso sobre desigualdade, sem propostas de alternativas viáveis, sem mobilização popular e, sobretudo, sem qualquer expectativa de uma revolução.

É uma esquerda de hashtag, puramente cosmética, que continua se apresentando ao mundo como contestadora, mas, na prática, está plenamente integrada ao sistema que finge combater.

Nas universidades, multiplicam-se os departamentos de estudos marxistas (teorias críticas disso e daquilo), promovidos ou financiados por mega corporações capitalistas. Nos Estados Unidos, esses departamentos produzem análises sofisticadas, mas continuam formando alunos para empregos em consultorias ou bancos.

No Brasil, sobretudo nos cursos de Humanas, só produzem toneladas de lixo acadêmico, mas a dinâmica é a mesma: ano após ano, as universidades estão formando gente que vai passar a vida lacrando no iPhone 16 contra o sistema ao qual servem, e do qual se beneficiam.

Mark Fisher sugere que o marxismo neoliberal mistura a ênfase marxista no coletivo com a exaltação neoliberal do indivíduo, ao transformar a luta de classes em narrativas pessoais de “resistência”.

Seria o caso, por exemplo, daquele influenciador de esquerda que, malandramente, mantém a pose de crítico do capitalismo enquanto só viaja de primeira classe e recebe generosas verbas de George Soros. Ou das milhares de ONGs ligadas à agenda identitária, ao ambientalismo ou ao “empreendedorismo social”, igualmente bancadas pela Open Society ou por outros bilionários de esquerda (certamente movidos por boas intenções).

Antigos ideais marxistas foram transformados em marcas muito lucrativas. O sonho esquerdista de igualdade virou branding. A esquerda se transformou, ela própria, em mercadoria – que se vende por um preço muito barato

Nas redes sociais, influenciadores da elite progressista atingem milhões de pessoas, alimentando algoritmos capitalistas. Mas um post que viraliza denunciando a desigualdade só gera receita para o influenciador e a big tech, sem contribuir em nada para melhorar a vida do pobre. Tudo bem, o objetivo não era mesmo mudar nada, mas lacrar - e, se possível, lucrar com isso. No marxismo neoliberal, todos os idealistas lucram com seu ideal.

Não é à toa que as lutas sociais são capturadas e as bandeiras progressistas são cooptadas por corporações que abraçam a diversidade como marketing. Cada vez mais empresas adotam discursos progressistas (como a defesa do capitalismo “consciente”, ou “verde”,  ou “inclusivo”) para vender seus produtos e serviços, enquanto o Estado recua em ações estruturais focadas no desenvolvimento.

Antigos ideais marxistas, como igualdade e solidariedade, foram transformados em marcas muito lucrativas. O sonho esquerdista virou branding. A esquerda se transformou, ela própria, em mercadoria – que se vende por um preço muito barato. E ai de quem falar mal dos lucros crescentes dos bancos: "O banqueiro é meu amigo, mexeu com ele mexeu comigo!"

Outro autor marxista que se dedicou ao tema, Slavoj Zizek, ironiza essa tendência como “radicalismo Starbucks”: a ideia de que é possível combater o sistema por meio de pequenos gestos éticos, sem mexer nas estruturas de poder.

Para Zizek, este é o núcleo do marxismo neoliberal: um discurso antissistêmico que se acomoda perfeitamente ao sistema. A esquerda se conforma hoje com a gestão do capitalismo, o que significa, na prática, a aceitação da lógica do mercado como incontornável, a adesão ao lema de Margaret Thatcher: “Não existe alternativa”.

Como uma melancia às avessas, ela é vermelha por fora, no discurso de justiça social que adota para enganar os trouxas; mas é verde por dentro, na prática do capitalismo de compadrio, que enriquece ainda mais quem a sustenta.

É claro que isso também se aplica ao Brasil, onde o principal partido de esquerda, ao chegar ao poder, optou por se conciliar com o grande capital, combinando políticas sociais assistencialistas com a financeirização da economia.

A narrativa de inclusão social baseada em programas de auxílio e bolhas de consumo convive, sem qualquer atrito, com a manutenção dos lucros recordes dos bancos e das grandes empresas. O resultado é o endividamento das classes populares e do próprio Estado, para benefício de poucos. Mas economia a gente vê depois.

No Brasil, o caso da educação também é emblemático do marxismo neoliberal: em vez de melhorar a qualidade da educação básica, onde começa o problema, criou-se um programa de financiamento do setor privado de ensino superior, gerando lucros bilionários para meia dúzia  de grupos empresariais.

O resultado: multiplicaram-se as universidades que distribuem diplomas como medida compensatória, sem atacar a raiz da crise. Mas, como disse Darcy Ribeiro, no Brasil, a crise da educação não é uma crise: é um projeto.

O marxismo neoliberal não é uma síntese coerente, mas um espelho das contradições da nossa época: um marxismo que critica o capitalismo enquanto opera dentro dele. Não é uma força transformadora, é uma força de congelamento das estruturas de poder.

É um sintoma do realismo capitalista descrito por Mark Fisher: “É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo", diz o subtítulo de seu livro. Sendo, como era, um pensador de esquerda, Mark Fisher não suportou o peso dessa constatação: deprimido, ele se matou em 2017, aos 48 anos.

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Conteúdo editado por: Aline Menezes

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